Do conflito ao esplendor
Texto de Marco Fialho
O disco "Elis & Tom" bem que poderia estar na minha página de crônicas chamada "Músicas que habitam em mim" (que por enquanto está adormecida), porque este foi um álbum que encheu de vida minha existência, lá numa época quando eu vivia arte imaginando que todos também estavam na mesma vibração, pensamento típico de quem está em um espaço de privilégio e acha que o mundo é uma extensão de si mesmo. Mas que baque foi assistir ao documentário sobre os 50 anos desse trabalho que marcou a nossa vida musical. "Elis & Tom, só tinha que ser com você", dirigido por Roberto de Oliveira (em parceria com Jom Tob Azulay), justamente o idealizador do encontro do nosso maior compositor com a nossa maior intérprete.
O filme em si trata de um outro encontro, o do presente com o passado, pois Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay misturam com muita destreza depoimentos de hoje com imagens registradas nos anos 1970. Estruturalmente, o documentário também se aproveita de um depoimento de André Midani para dividir o que veremos no filme. Midani diz que a música de Elis e Tom se divide no antes e depois dessa gravação, que na verdade foi muito ameaçada de não ser concluída por diversas vezes. Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay constroem a carreira de ambos até se chegar ao momento do encontro tão esperado, como cada um dos dois foi reconhecido por seus talentos irrefreáveis. Os diretores conseguem extrair as consequências desse encontro musical extraordinário para os dois principais envolvidos, com uma câmera bem posicionada, e quase invisível (bem fiel ao modo do Cinema direto norte-americano em voga à época dos anos 1970), a captar detalhes cruciais desse encontro que por vezes chega a momentos da mais alta tensão.
O documentário também se alimenta desse clima tenso que foi a concretização desse projeto musicalmente ambicioso, já que tanto Elis quanto Tom eram consagrados e conhecidos por serem possuidores de uma personalidade artística imperativa e impositiva, ambos deixavam sempre as suas digitais por onde passavam, eram furacões demolidores e incontestes. A tensão dos bastidores não poderia ser maior, em especial quando vamos descobrindo que a ideia de Elis era fazer um disco de carreira em homenagem a Tom, e assim levou os seus músicos (todos com performances inacreditáveis) e seu arranjador e pianista (o então marido Cesar Camargo Mariano, ainda não tão conhecido pelo público) o que assustou o célebre compositor de "Garota de Ipanema" e "Desafinado", que sentiu-se afrontado com a situação.
Uma impressão que fica é que os 100 minutos do filme passam como um foguete, a cada nova cena queremos ver o vem a seguir e até chegamos a duvidar como esse disco foi concluído, pois durante o processo tudo caminhou de maneira bem difícil. Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay conduzem bem essa tensão, mas sem criar um sensacionalismo, pelo contrário, conseguiram mostrar como as diferenças, aos poucos, foram sendo somadas ao trabalho. Nas discordâncias havia sim vaidades em jogo, mas o diretor pacientemente levanta seu muro, tijolo a tijolo, e vai edificando que a disputa em questão era muito mais artística do que de ego, o que se revela em tempo é uma queda de braço de visões díspares no que tange à concepção musical.
De um lado, Tom Jobim possuía uma experiência indiscutível, inclusive internacional, já havia gravado até o célebre disco com Sinatra, mas por outro lado, Elis tinha que se recompor de um fato sinistro de ter cantado numa Olimpíada militar em plena ditadura dos milicos, mas tinha de quebra, ao seu lado, a juventude arisca e elétrica de Camargo Mariano (afeiçoado aos teclados mais modernos e amplificados), ávido por levar as ousadias vocais da pimentinha em direção ao infinito. A voz de Elis estava na plenitude e Tom vivia um momento mais afastado do sucesso, mas com um passado recente de inquestionável valor. Esses eram os pesos que cada um colocava em seu lado da balança para tentar equilibrar o que julgavam fundamental para o projeto. Elis queria impor os malabarismos vocais enquanto Tom queria algo mais intimista.
Das muitas entrevistas que Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay captaram agora, com mais distanciamento dos envolvidos, tudo leva a crer, que foi um processo artístico onde Tom fez o papel de um domador e Elis a de uma leoa difícil de domar. O resultado do disco talvez seja o maior balizador depois de passados os 50 anos da gravação. Um elemento fundamental que os diretores introduzem ao seu documentário são os depoimentos dos músicos participantes numa perspectiva de hoje, lembrando que apenas Luizão Maia (baixo) e Oscar Castro-Neves (violão) daquela banda fantástica morreram. Hélio Delmiro (guitarra), Paulo Braga (bateria), Camargo Mariano (teclados) fazem falas emocionadas e eloquentes, sem papas na língua.
A grande potência de "Elis & Tom, só tinha que ser com você" é como Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay conseguem juntar a história desses dois gênios musicais com suas contradições, vaidades artísticas, empoderamentos, emaranhar as vidas pessoais e profissionais, e mostrar como se pode vencer as barreiras do ego em prol de um projeto importante para a nossa música. Desse encontro nasceram coisas lindas (a célebre gravação de "Águas de março", inclusive), a mais incrível talvez seja ver como Elis saiu dessa experiência com um domínio maior no uso da voz nas canções, que às vezes o menos pode ser mais. O documentário mostra bem como o minimalismo de Tom Jobim contribuiu para que Elis pudesse florescer mais, não só em "Elis e Tom", mas depois no que ela viria a aprontar na carreira subsequente, gravando discos memoráveis como "Falso Brilhante" (1976), "Essa mulher" (1979) e "Saudades do Brasil" (1980), além da espetacular apresentação no Festival de Montreux. Uma pena que esse filme tenha um final.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!