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AFIRE (2022) Dir. Christian Petzold


A escritura de Leon e a câmera desveladora de Petzold 

Texto de Marco Fialho

Filme a filme o cineasta alemão Christian Petzold vem se destacando como um artista consistente. "Afire" vem confirmar essa impressão. É instigante o quanto o diretor vai a cada nova sequência mudando as expectativas da trama. Há uma riqueza narrativa indubitável e nesse texto vamos falar e discutir muito sobre ela. 

Petzold inicia "Afire" com a promessa de que veremos Leon (Thomas Schubert), um jovem escritor indo para a casa de campo do amigo Felix (Enno Trebs), em busca de tranquilidade para terminar o seu próximo livro. E claro que isso é o que não acontece. A cada novo dia, Leon vai se complicando na escrita, na medida em que se apaixona por Nadja (Paula Beer) moradora inesperada da casa e cai numa progressiva dispersão de sua atenção. O filme então dá essa guinada, para se focar mais nessa relação nada fácil entre Leon e Nadja. 


Interessante como Petzold encaminha o filme para ser sobre a personalidade de Leon, que se mostra uma pessoa arrogante, vaidosa e por demais autocentrada. Ao trazer para o protagonismo uma figura sem muito carisma, o Petzold cria um constante estranhamento para a sua trama. Leon é um personagem difícil de se afeiçoar, não que ele seja um mau-caráter, apenas possui uma personalidade para lá de irritante e confusa. Tudo leva a crer que Leon é um personagem que apesar de ser um escritor, se mostra incapaz de entender as relações humanas de seu tempo. Primeiro ele vê Nadja como namorada do salva vida da praia, depois fica assustado de perceber que o mesmo salva vida estava transando com o seu amigo Felix, e para a sua surpresa, Nadja não demonstrou nenhuma reação a respeito. Essa sexualidade fluida dos personagens confunde Leon, que fica sempre paralisado numa latente perplexidade.   

Um aspecto que quero trazer para discussão é como o diretor trabalha na trama a questão social de fundo. No caso, como Petzold traz para a cena as queimadas, que põe em risco a vida de animais e pessoas. De repente, esse fundo torna-se o principal e determinante para o próprio enredo, o que mexe gravemente na vida de cada personagem. O diretor sabe lidar com essa relação entre personagens e forças que estão acima deles e mostra o quanto nós humanos vivemos um momento em que estamos profundamente impactados pelas ações políticas de gerações anteriores e atuais. Creio que nós brasileiros conseguimos entender bem essa interferência da política na questão climática mundial.     


Importante salientar o quanto Petzold trabalha a mise-en-scène, a maneira de como pensa a câmera, disposta sempre em uma posição que acrescenta muitas dimensões à ideia de cada cena. Uma câmera à disposição dos atores dando destaque a eles, afinal, esse é também muito um filme de personagens, mas se repararmos bem, é igualmente um filme de diretor, pois ele sabe quando por a câmera para os atores, e na mesma proporção, a hora de por a trama na mão da direção, sabendo sublinhar os enquadramentos e os movimentos de câmera para ampliar a ideia da cena. Por exemplo, em muitas cenas os personagens estão conversando e revelando informações inesperadas para Leon, e de repente, vemos a câmera mostrando a reação dele, ao invés da conversa. Esse é um artifício da direção, de deixar a conversa em off enquanto assistimos apenas a reação de um personagem que está calado na cena.   

Existe uma tensão permanente entre o texto literário de Leon e a própria escrita cinematográfica de Petzold. A maneira como o diretor introduz o texto literário. Há uma leitura em voz alta do novo romance de Leon pelo seu editor, mas há uma chamada telefônica e ele se levanta para atender. Nisso chega Nadja das compras e convida o editor para o jantar. Essa cena é tensa pois o que vemos é o olhar de Leon sobre o editor e Nadja. Essa cena à distância, filmada em plano geral, é a visão de Leon, que aproveita para ver os papéis do editor todo riscado, o que deixa clara a rejeição dele ao trabalho do escritor. A partir daí, a narrativa dá uma virada, pois a tensão de Leon se torna insuportável. A câmera de Petzold registra isso com o máximo de eficiência, apenas com enquadramentos bem pensados.


Uma das estratégias narrativas acertadas de Christian Petzold para "Afire" é de manter o público e Leon sem muitas informações sobre Nadja. Na verdade, nós espectadores, temos sempre a mesma perspectiva do que Leon. Ficamos sempre na expectativa de como Nadja vai agir ou falar, já que ela é a personagem capaz de modificar toda a nossa percepção sobre as relações humanas. Inclusive no final fica a dúvida se algo mudou na relação entre Nadja e Leon, e talvez, para melhor compreende-la precisamos pensar no livro que Leon enfim consegue escrever. Petzold deixa tudo em suspenso, tanto o presente quanto o futuro. E esse tempero narrativo é o melhor que o diretor pode nos oferecer.                  

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