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CAPITU E O CAPÍTULO (2023) Dir. Julio Bressane


O encontro soturno de Machado, Bressane e Casmurro 

Texto de Marco Fialho

"Capitu e o capítulo" poderia ser mais uma das adaptações cinematográficas realizadas a partir do nosso maior escritor, mas um detalhe se não fosse dirigido por Julio Bressane, pelo nosso cineasta mais instigante e provocador dos que ainda estão em atividade. A carreira profícua desse realizador é conhecida, seus filmes estão sempre a mobilizar a uma plateia que em anos de atividade do diretor esteve presente, desejosa por descobrir quais mistérios Bressane reservou em seu novo trabalho. 

Não é a primeira vez que Bressane se aventura pelas searas de Machado de Assis, lá em 1985, ele filmou "Brás Cubas" (que aqui volta em uma cena desconcertante de um microfone pendurado por  um fio a passear por uma carcaça de ossos humanos), mantendo a verve que lhe é própria. Em "Capitu e o capítulo" Bressane reafirma sua marca de ousadia ao não realizar uma obra exatamente fiel à original. Como é de praxe, inclusive está exposto nos créditos finais, Bressane extrai seu filme da obra de Machado de Assis. O filme não está a contar ipsis litteris a história de "Dom Casmurro", ainda mais que "Capitu e o capítulo" é um filme de Bressane, o que quer dizer que jamais será uma tentativa de se espelhar o livro de Machado. Peço desculpas por esse longo preâmbulo, mas creio que aqui ele seja necessário para que possamos começar a esboçar uma análise do filme. 


É oportuno pontuar que Bressane realiza em "Capitu e o capítulo" um híbrido de arte, com nítidas inspirações teatrais, pictoriais, audiovisuais, literárias (com direito à prosa e verso) e musicais. Isto quer dizer que Bressane costura diversas referências e citações de todas essas linguagens artísticas, o que aliás vem se desenhando como uma característica na assinatura do diretor em seus filmes mais recentes. Ainda há cenas em que Bressane amplia essas referências ao inserir dados sociológicos que impactam na estética do filme. Uma das cenas mais belas, e que é significativa disso, é a que Bressane resgata poeticamente a influência ameríndia na língua portuguesa, no nome das coisas, nos bairros cariocas que até hoje resistem, mesmo que os povos originários tenham sido historicamente exterminados pelos colonizadores e seus descendentes. Bom lembrar ainda que Machado está a retratar em Dom Casmurro uma elite, representados por personagens urbanos, e brancos, que embora abastados, se revelam frágeis emocionalmente.    

O filme me encantou ainda numa perspectiva histórica, de como Bressane aborda o tradicional século XIX. Enquanto vemos um mundo socialmente constrito na superfície, com suas vestimentas luxuosas, somos levados em paralelo a um universo da intimidade (ou do sonho?), onde os corpos encontram-se libertos da moralidade pudica. Em Dom Casmurro, Machado de Assis, faz um ótimo retrato de uma sociedade que está em franca transformação urbana e dos costumes. O fragmento de história que Bressane sublinha, e desenvolve livremente, perpassa por ações de Bentinho (Vladimir Brichta) e Capitu (Mariana Ximenes), além de Escobar e Sancha (Djin Sganzerla). Interessante como Bressane insere planos de diversas obras suas para dialogar tanto com Machado quanto consigo mesmo, o que mostra o quanto de pessoalidade e autoralidade esse filme carrega. 


Bressane mantém firme o propósito machadiano de confundir realidade e imaginação. Em nenhum momento podemos afirmar o que é uma ou outra. O filme caminha entre o estranhamento das cenas em que ora se apresentam rigorosamente austeras e posadas ora explosivas e sexualmente provocadoras. Bressane captura, com o auxílio  luxuoso da fotografia de Lucas Barbi, olhares enigmáticos, closes inusitados, planos enviesados e refletidos tensionado a construção de uma estrutura estética da sociedade, que Machado de Assis torneou de maneira robusta com a sua prosa tão encantadora quanto enigmática. Mas para firmar essa base conceitual, Bressane contou com cenários teatrais fundamentais e que dialogam decisivamente com a leitura que faz de Machado. Curioso como os cenários são todos pensados do ponto de vista de uma encenação clássica do palco italiano e os enfatizam como se fossem emoldurar uma pintura figurativa, mesmo que insistentemente Bressane desafie a própria estrutura clássica montada, com a quebra da quarta parede, fazendo seus atores olharem e falarem diretamente com os espectadores.  

Podemos dizer que hoje, em pleno século XXI, "Dom Casmurro" artisticamente é uma espécie de sombra mitológica, o tal olhar oblíquo e dissimulado de Capitu continua algo a ser decifrado, a ser descortinado por estudiosos e críticos literários. Bressane tão pouco se aventura em fazer uma obra elucidativa, sabiamente, expande e enriquece esse universo, o interroga com encenações teatrais perfeitas para criar um quadro de uma sociedade que pouco se movimentava na superfície. As falas e os gestos são impostados, retratistas mesmo, pontuam e emolduram a parte mais visível do conservadorismo, cujos olhares se tornavam o elemento desestruturador do empertigado e insosso mundo varonil do final do século XIX. Os quadros de uma época histórica mais antiga ainda, utilizados por Bressane na narrativa, reforçam as temáticas abordadas, em que o mote da tentação diabólica espreita os personagens machadianos. São filigranas que Bressane nos apresenta com muita sutileza e rigor.


Ainda tem Casmurro (Enrique Diaz), lógico, personagem igualmente imaginário e fantasmagórico, assombreado pela personalidade machadiana, um tipo sinistro, um alter ego fascinante, a desfilar citações de vários poetas mortos precocemente. Mas fica a dúvida (ou enigma): seria o Casmurro de Bressane um alter ego de Machado ou dele mesmo, ou uma simbiose de ambos? Os livros e a cartola no escritório de Casmurro reafirmam as dúvidas. Bressane, mais uma vez, se revela essencialmente um machadiano seja no plano filosófico seja no escopo dramatúrgico, com os atores tratados como protótipos objetivos, com pouca margem para se aflorar suas subjetividades, o que permite que as dúvidas fiquem pairando implacavelmente no ar e na cabeça dos espectadores. 

E a maneira de tratar Casmurro, com uma visível admiração soturna, deixa isso muito evidente, ainda mais se pesarmos em como Bressane replica, sistematicamente, no campo imagético, os reflexos, as transparências e as sombras, ótimos aliados da imaginação e do onírico. Em "Capitu e o capítulo" Casmurro se revela um narrador impreciso, poético e caótico, tal como o cinema de Bressane igualmente se descortina. A poesia de Bressane é marcante, seja em planos simples e belos, lembro agora de Capitu desfolhando as belíssimas flores do jarro, com uma composição esmerada do quadro (não os dos pintores, mas o do próprio Bressane). Durante a minha fruição, pensei muito em autores como Roberto Schwarz, que dedicou sua vida a estudar Machado de Assis, que identificou nos romances machadianos mais expressivos, as contradições inerentes à sociedade brasileira do final do século XIX, apontando os ranços do passado colonial e escravista como escombro e empecilho para uma sociedade capitalista que estava a nascer à época. Bressane está visivelmente atento a essas questões e as trabalha poderosamente no subtexto de "Capitu e o capítulo" e a posturas dos personagens entregam muito acerca dessa sociedade que está ali a impregná-los através de um passado opressor difícil de apagar.    


Vale registrar que todo o cuidado que Bressane vislumbra com a visualidade e com o campo imagético do filme são contrapostos à narrativa fragmentada e atemporal, concebida inteligentemente por uma montagem construída por quadros dialógicos que se organizam em forma de mosaicos. Bressane, como um mestre que é, mostra uma maturidade artística extraordinária, ao adensar em sua obra reflexões grandiosas em uma encenação aparentemente simples nas composições dos cenários (ora de época, onde o mobiliário formam conjuntos decisivos, ora por cenários artificiosamente pintados cenograficamente), assim como nas interpretações quase minimalistas dos atores. Uma aula verdadeira de como se fazer, e sobretudo, de como se pensar cinema em um país onde esta arte vem crescentemente tendendo ao vil apagamento.

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