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OPPENHEIMER (2023) Dir. Christopher Nolan


Nolan e a espetacularização de um genocídio 

Texto de Marco Fialho

Se tem algo que caracteriza o cinema de Christopher Nolan é a inconfundível tendência para o exagero e em "Oppenheimer" não é diferente. Muitos podem tolerar esse aspecto hiperbólico de suas obras, mas confesso que estou no grupo que fica extremamente incomodado, esse impulso em sublinhar os momentos de emoção e tensão que já estão postos nos diálogos, na câmera e na interpretação dos atores. "Oppenheimer" chega a ser agressivo, em especial para os ouvidos, que sofrem com a falta de sutileza em várias cenas. Nolan abusa na maneira de inserir a música no filme e realiza um das obras mais torturantes no que tange ao didatismo sonoro, com sucessivas reiterações desnecessárias. Inclusive, a música do sueco Ludwig Göransson tem momentos que contribui pouco para a dramaturgia ao chamar mais atenção do que o próprio enredo.

Se assinalo o didatismo como um problema, preciso dizer que ele é agravado por um pedantismo que beira o insuportável, com cenas construídas tecnicamente com um evidente traço exibicionista e egocêntrico, bem naquele intuito de dizer "olha como eu sou um diretor que sei fazer uma cena com um som impactante" (a cena do teste da bomba é um ótimo exemplo). Esse maneirismo é muito típico de Nolan, usar de atributos tecnológicos de ponta para exacerbar a ideia de uma cena que já está explícita por outros meios narrativos ou de interpretação dos atores. Como exemplo, tem a cena em que Oppenheimer está sendo julgado por uma comissão governamental, e numa visão subjetiva do físico a sala de audiência se transforma, como se estivesse recebendo efeitos de uma bomba atômica, evidenciando clarões luminosos na imagem e um som que denuncia a sua consciência angustiada. Outras cenas são as que ele fala sobre os componentes que poderiam causar fricção e explosões, e vemos imagens de faíscas estourando, numa mensagem repetida, simultaneamente, tanto na fala quanto na imagem. São exageros que talvez agradem aos fãs de Nolan, sedentos por cenas filmadas dessa forma, mas que incomodam outros espectadores que se sentem excessivamente manipulados por esses forçados estratagemas narrativos. É um bem filmar esdrúxulo, por ser excessivo, vaidoso, arrogante e camuflar as intenções da direção ao desviar a atenção do público da história. 


"Oppenheimer" (inspirado no livro "Prometeu americano: o triunfo e a tragédia de J. Robert Oppenheimeir) aborda uma das épocas mais exploradas pelo cinema: a da Segunda Guerra Mundial e as suas consequências para o final do século XX. Se por um lado, o filme foge da precisão cronológica (não há uma sinalização de data durante toda a projeção), por outro, vai acumulando personagens que entram e saem de cena sem a menor cerimônia, fora o já consagrado desprezo que Nolan nutre pelas personagens femininas em suas obras, o que aqui novamente é recorrente, mesmo que tenhamos duas delas muito interessantes no enredo (interpretadas pelas ótimas Florence Pugh e Emily Blunt), ambas subdimensionadas pelo roteiro. Esse é um filme que expressa claramente uma visão de sociedade masculinizada e tóxica, um filme de homens, de uma história de homens para homens. Outro personagem que soa estranho na trama é o de Einstein (Tom Conti), que aparece como um velhinho meio doido que gosta de passear cotidiana e displicentemente em um parque dando conselhos aleatórios para Oppenheimer. Ainda bem que sabemos da importância de Einstein para a física e não precisamos de Nolan para nos esclarecer sobre ela. Os maiores destaques do elenco masculino são Cillian Murphy, como Oppenheimer (apesar de protagonizar uma das piores cenas de sexo do cinema), e Robert Downey Jr., como Lewis Strauss (mesmo que recaia alguns resquícios maneiristas em sua interpretação).

O cinema já é por natureza uma arte da manipulação dos elementos que o constituem e saber isso nos faz aceitar de bom grado a criação comandada pelos diretores nos filmes. Entretanto, Nolan abusa dessa permissão que o próprio meio encampa e estabelece uma série de discursos em "Oppenheimer". Podemos afirmar que o ponto central da obra é não só a construção como também a proliferação desses discursos. Nolan organiza "Oppenheimer" por blocos mais discursivos do que temáticos, e em cada um deles manipula a visão do espectador, só que esses blocos muitas vezes são contraditórios entre si. Em um, Nolan passa a ideia de que Oppenheimer é inocente, em outro manipulador, em outro vaidoso, depois ambicioso. Mas fora esse viés personalista da história, Nolan também vai alternando e acumulando visões sobre o próprio Estados Unidos, que vai de heroico a vilão em um passe de mágica, assim como a maioria dos personagens (sobretudo Oppenheimer). Nolan constrói um Oppenheimer tão frio que a ele todas as ações são factíveis, pois esse é um personagem que tudo pode, inclusive ir do paraíso ao inferno ao seu bel prazer. 

Por isso, considero "Oppenheimer" como uma obra sobre a manipulação do discurso, inclusive o cinematográfico. Parte de um tema conhecido e já muito discutido, e se esforça em forjar diversas e contraditórias visões, que embora partam do real envolvem conclusões duvidosas, e muitas vezes sem o devido respaldo histórico. Mas para início de conversa, Oppenheimer jamais foi ingênuo, nem tão pouco inconsequente, sabia desde o início o tamanho do buraco em que estava entrando, porém foi em frente por ambição e reconhecimento profissional. Assim Nolan aproveita-se de ser "apenas" um diretor de cinema e torna-se um abusador da história, a atropela sem demonstrar a menor noção de escrúpulo e sai fabricando fatos à revelia. Um deles, já devidamente desmascarado, é o da região de Los Alamos, mostrada no filme como inabitada, enquanto em verdade muitos de seus moradores morreram de câncer depois que o projeto Manhattan passou por lá, o que manifesta uma indiferença dos militares e do governo dos Estados Unidos a maioria da população hispânica que lá morava, e também a de Nolan, que assina embaixo dessa história de violência e prepotência.           


Em "Oppenheimer", as explicações históricas são quase sempre pobres e chegam a beirar o leviano. Na internet já se encontram várias mentiras propagadas pelo filme. E esse é um tema extremamente delicado e que merecia está cercado de cuidados antes de ser ficcionalizado, já que envolve o extermínio de milhares de pessoas à sangue-frio. Nolan vai superpondo versões e ideias, no mínimo, questionáveis. Primeiro, o filme diz que a bomba era necessária para combater e deter o nazismo (o que é historicamente exagerado, e ajuda a aceitar a ideia de que a bomba era realmente indispensável de ser fabricada, quando sabemos que Hitler foi derrotado bem antes dela ser lançada em Hiroshima e Nagasaki, além de esquecer que estamos a falar de um país altamente armamentista e que arrecada até hoje bilhões com essa indústria); depois, despretensiosamente, se vende a ideia de que o bombardeio no Japão foi sugestão de Stalin (então líder soviético), que em uma conversa telefônica havia dito isso; e por último, que a bomba era imprescindível para frear o avanço da União Soviética (que espertamente e para se preservar também desenvolveu a bomba, e não ao contrário, como o filme afirma). 

O filme demonstra muita fragilidade também no roteiro, que enfileira uma série de frases feitas que banalizam e empobrecem as discussões da época, e servem de uma espécie de síntese das sequências, ora sobre comunismo ora para definir a própria operação secreta Manhattan. Frases apelativas como "não sei se somos confiáveis com uma arma dessa, mas não temos escolha", ou piegas como "você não pode cometer um pecado e depois pedir a todos nós para ter pena de você quando há consequências"; ou mesmo fatalistas como "quer dizer que, quando apertamos o botão, há uma chance de destruirmos o mundo?". Inclusive, "Oppenheimer" pedia uma melhor revisão em relação ao texto, há no todo muito diálogo, o que torna o filme cansativo durante as três longas horas, e convenhamos, que Nolan não é exatamente um Tarantino com a caneta na mão.


Entretanto, talvez o mais terrível desse filme de Nolan seja o seu desejo irrefreável de transformar uma tragédia em um espetáculo cinematográfico vigoroso, filmado com câmera imax de última geração, e com uma mixagem e edição de som, literalmente, estrondosas. Pode-se até argumentar que Nolan queria tornar esse poder destrutivo da bomba atômica em algo (hiper) realista, e que para isso, a parte técnica seria fundamental para fazer tudo soar o mais crível possível. Mas ao final, tudo fica muito solto e confuso pela maneira como conduz o próprio protagonista, como se fora um mero boneco, marcado por uma permissividade absurda. Oppenheimer passa por uma condenação (por meio de uma armação) e depois por uma absolvição (reconhecimento do seu valor, afinal, ele nada mais fez do que o Estado exigiu dele) enfatizada com direito a imagens de premiações e condecorações oficiais, mesmo que o personagem demonstre consciência de suas ações, embora isso não as apague. Será que o arrependimento de Oppenheimer realmente o absolve? Mas, e Nolan, como fica moralmente a sua imagem? Confesso que quando penso em como ele realizou a sequência do teste da bomba, a forma na qual construiu toda a tensão detalhadamente, como decupou esses planos e o quanto primou pela beleza deles (os mais belos indiscutivelmente do filme, os mais bem fotografados por Hoyte Van Hoytema), me vem um certo desespero e tristeza. 

Quando Nolan torna algo tão trágico para a humanidade em um espetáculo majestoso, confesso e reconheço o quanto foi difícil de assistir todo esse show de prepotência técnica até o fim. Sim, porque a cena do teste da bomba atômica tem como subtexto algo muito grave, pois simbolicamente, é o próprio absurdo da cena da bomba sendo arremessada pelos mesmos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki, ela representa a extensão real do dano que o artefato podia alcançar, e no qual sabemos o quanto alcançou dias depois do teste. E Nolan, filma o desastre como um gozo paradisíaco, um afronta repleto de masculinidade tóxica de um império belicista. Me ficou martelando a seguinte pergunta: e as imagens reais da destruição para diferenciar o espetáculo cinematográfico da realidade, de milhares de pessoas morrendo instantaneamente e outras tantas no decorrer dos dias, meses e anos? Desse ponto de vista, "Oppenheimer" se consubstancia como uma outra forma de destruição, agora pelas mãos do cinema. Há sim uma perspectiva moral que não pode ser simplificada pelo fato de que tudo é somente um filme de ficção para entreter, por sinal, isso torna tudo muito mais grave e insensível ainda. Ao final da sessão que fui, pessoas inocentemente aplaudiram, obviamente induzidas pelo espetáculo que Nolan proporcionou. O som, sem dúvida, é o grande atributo estético do filme, mas como ele fica depois que paramos para pensar na história que vimos e sobre o seu uso na narrativa como um todo?    

Historicamente, a bomba atômica é o calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos, fato reconhecido como um dos grandes genocídios da humanidade, praticado numa guerra que já estava vencida pelos Aliados, o que mostra não só uma demonstração de poder, mas sobretudo um exercício da crueldade sem precedentes na história. "Oppenheimer" revisita esse tema tão caro ao país e mesmo que não endosse diretamente o absurdo (isso seria também demais de dizer), ainda sim levanta pontos que ajudam a relativizar um ato atroz e injustificável, ainda mais porque os norte-americanos já sabiam do alcance da destruição que a bomba causava. Esse é mais um ponto que pesa contra a decisão de Nolan de filmar essa obra como exatamente decidiu filmar. Por isso, por um lado, pode-se dizer que cinematograficamente é mais um equívoco hiperbólico de Nolan, por outro, de um ponto de vista histórico, dá para dizer que Nolan criou mais um desastre humanitário vindo das terras do Tio Sam.

Comentários

  1. Enfim....o filme é uma bomba...

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  2. rsrsrs!! Adorei a metáfora, mas eu diria que é um filme que preza pela má-fé.

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  3. Eu não gostei do filme. Tudo que você falou me incomodou muito. Excesso de som, excesso de efeitos especiais, a personalidade de Oppenheimer ficou um pouco doente para mim.

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