Texto de Marco Fialho
"Máquina do desejo" é um documentário sobre um furacão chamado Zé Celso Martinez Corrêa e seu poder de agregar uma trupe de artistas e admiradores em torno de um projeto político, cultural e artístico tendo o Teatro Oficina como um campo aglutinador e propulsor de energias humanas transformadoras. O grande mérito do documentário da dupla Joaquim Castro e Lucas Weglinski é de embarcar na viagem de Zé Celso, em vez de tentar explicar ponto a ponto o rico e imersivo processo de criação que se orbitou naquele espaço durante 60 anos.
Um ponto crucial na narrativa de "Máquina do desejo" é partir de uma rica pesquisa de imagem ((Eloa Chouzal) e de depoimentos que não são mostrados, apenas ouvidos. Assim, os diretores amarram na montagem falas e imagens que possuem origens diferentes, que são amarradas pela temática, não pela simultaneidade, um desafio no qual o resultado é instigante, pois reconhecemos a maioria das vozes ou pelo timbre ou pelo próprio conteúdo do que está sendo narrado. Mas narrar um filme cujo protagonista é Zé Celso, coerentemente, jamais poderia resultar na obviedade e assumir riscos torna-se um caminho inevitável.
Apesar de "Máquina do desejo" abarcar o Teatro Opinião desde a sua origem no final dos anos 1950 e seguir um fluxo cronológico, o documentário não deseja explicar os vários acontecimentos nos quais o espaço foi protagonista, os diretores partem de um princípio que muitos dos acontecimentos e espetáculo já são de conhecimento público e adentra neles sem grande explicações na maioria das vezes. Um dos aspectos mais interessantes do filme é presenciar o quanto a figura de Zé Celso vai crescendo e se misturando ao próprio Oficina, a ponto de um incorporar o outro. Zé Celso tornou-se icônico não só em relação a São Paulo como também ao próprio teatro brasileiro.
De certa maneira, Zé Celso é o próprio teatro, assimilou em sua lida a história macro do teatro ao encenar clássicos, embora o tenha feito de uma forma pessoalíssima, como só um um mestre ou um bardo a entoar um mundo futuro que precisa existir a partir de hoje. Em sua briga com o comunicador e mega empresário Silvio Santos pelo terreno do Oficina, pode-se registrar um simbolismo do amor contra o dinheiro ou de uma luta contra Golias, como Zé Celso gostava de mencionar. Os diretores do filme se esforçam por contar a batalha em torno do Teatro Oficina, tentando fugir do inevitável personalismo do diretor, ainda mais que a sua personalidade imponente vai tomando um vulto crescente no decorrer dos anos.
O mais extraordinário é o quanto a história do Oficina possui, por si mesma, uma narrativa épica. Em vários momentos da história o teatro fecha, reabre, é tombado, condenado pela defesa civil, boicotado e vê a cidade crescer barbaramente em seu entorno, vê o poder do vizinho Silvio Santos se avolumar como uma sombra nada conciliatória, que quer comprar o espaço para transformá-lo em qualquer negócio lucrativo. "Máquina do desejo" narra essa epopeia que Zé Celso faz questão de tornar uma luta da própria classe artística pelo direito de existir perante a riqueza da maior cidade da América do Sul.
O que o Oficina representa é algo na esfera do simbólico, da necessidade de fazer teatro integralmente com o corpo. E Zé Celso ciente disso oxigena o corpo do Oficina, pensando no cérebro, no coração, rim, pulmão, sexo e cu do teatro. Depois de 17 anos fechado, o Oficina reabre com um projeto magnífico de Lina Bo Bardi, cuja influência de Zé Celso é evidente. Esse novo Oficina fez novamente Zé Celso tornar-se o epicentro do teatro brasileiro e com sua visão dionisíaca revolucionou e rejuvenesceu a cena teatral brasileira com a coragem artística de sempre. "Máquina do desejo" traduz tudo isso por imagens e depoimentos diretos, consegue ser criativo e elucidativo sem ser óbvio. Enquanto São Paulo existir, o Oficina viverá, porque o gênio de Zé Celso criou não um espaço, mas sim um local de morada para a eternidade e o desejo.
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