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FOGO-FÁTUO (2022) Dir. João Pedro Rodrigues / FANTASMA NEON (2022) Dir. Leonardo Martineli


É possível viver a partir dos escombros ou "As pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer ... e morrer" (em aspas, trecho retirado da música Panis et circenses)

Texto de Marco Fialho

O cinema do português João Pedro Rodrigues vem chamando atenção aqui no Brasil desde que filmou o seu primeiro longa "Fantasma" (2000) e chegou ao ápice com "O ornitólogo" (2016), com um cinema erótico, queer e sempre contundente. Agora, com "Fogo-fátuo", a sua filmografia é acrescida de leveza, com um híbrido de musical e comédia de costumes. O filme português ganhou aqui no Brasil, a justa companhia na distribuição nos cinemas, do premiado curta brasileiro "Fantasma neon", de Leonardo Martineli, ambos exibidos em uma sessão única. Essa foi uma ótima iniciativa da distribuidora Vitrine Filmes, já que o diálogo e as afinidades entre os dois filmes são notórias. Abaixo, após o texto acerca de "Fogo-fátuo", os leitores poderão também conferir a minha análise de "Fantasma neon". 

Creio que seja importante de lembrar que "Fogo-fátuo" embora reflita sobre as memórias do protagonista Alfredo, que no leito de morte contempla o quadro de Conrado Roza em que personagens negros escravizados fazem Alfredo relembrar as aventuras do passado. O filme realiza uma sátira cínica dos costumes conservadores de uma família monárquica, zomba do orgulho e arrogância classistas e propõe uma outra maneira da sociedade se relacionar, para além da política colonialista que somente acentuou as desigualdades entre os povos. É um filme com muitas camadas, cujos os detalhes são fundamentais para que a obra seja fruída com mais riqueza.


João Pedro Rodrigues organiza o filme em gags, umas musicais, outras mais performáticas. Algumas passagens de uma sequência para outra são criativas e interessantes, como as das portas funcionarem como cortinas para a própria encenação deslocada da desconexa e empoderada realeza. O diretor cria uma ideia de representação classista mesmo, com delimitação inclusive do espaço cênico. É brilhante a cena em que a mãe de Alfredo ao fechar à porta pede licença aos espectadores. O filme me remeteu, em especial na sua primeira parte, à música "Panis et circenses" (Caetano e Gil), pela presença constante da mesa de jantar como elemento cênico e onde os conflitos ideológicos da família eclodem com força, com Alfredo demarcando suas diferenças e insatisfações perante ao absurdo e preponderante pensamento conservador do pai e da mãe, inclusive a cena em que anuncia a decisão de ser bombeiro e o próprio Alfredo assim encerra a primeira parte do filme ao fechar ele a porta cênica da realeza, a mesma que a mãe havia fechado para o público. Agora, Alfredo a escancara publicamente, para revelar as nuances de sua personalidade placidamente contestadora. 

"Fogo-fátuo" chega então ao segundo ato, com João Pedro Rodrigues entoando sua fábula dedicada ao corpo masculino ao entregar o personagem a seus desejos antes reprimidos pela família conservadora. O filme, então, dá uma considerável guinada queer. Nos Bombeiros conhece o xará Afonso, um jovem negro na qual se sente prontamente atraído. Esse ato segundo é o do humor, com gags inteiramente dedicadas ao homoerotismo. O erotismo de "Fogo-fátuo" é construído pela leveza do humor e do sarcasmo, com números performados por coreografias dançantes e cantantes. As cenas de sexo mais do que sensualizadas são performáticas e igualmente coreografadas, há uma cena em que predomina o sexo gráfico, já que os órgãos sexuais são substituídos por consolos. 


Mas o diretor em sua fábula queer contrasta imagens sexuais reais mediadas por consolos com outras de pênis reais, em close, projetados em uma tela, mais um elemento jocoso e provocador que João Pedro nos joga na cara. Os contrastes que o filme sublinha na narrativa são evidentes a todo instante, sejam na relação entre um homem branco e um negro, ou entre um primeiro ato mais frio da realeza que polariza com o calor emanado da vida de Alfredo com os bombeiros no segundo ato. Mas há um terceiro ato, em que o corpo morto de Alfredo é enfim literalmente disputado entre realeza (ou o que sobrou dela) e o corpo de bombeiros, o que faz sentido, pois uma dos pontos cruciais do filme é a sua faceta queer, da luta para ser quem se deseja ser. Não dá para esquecer que este é um filme sobre representatividade e desejo, mesmo que as situações e gags queer do filme estejam impregnadas com a leveza das narrativas musicais e performáticas.       

"Fogo-fátuo" é uma obra das mais intrigantes, provocativa e ousadamente farsesca, de certa maneira debochada, híbrida, e em busca de um risco narrativo até a última cena. Nela, as surpresas estão a rondar, o sarcasmo está a demolir o conservadorismo e a hipocrisia de uma sociedade para lá de carcomida. Não é este um filme-denúncia, antes é um filme que ri de um prédio que já está desabado, ou seria melhor dizer, carbonizado, para evocarmos o próprio título do filme, afinal, tem incêndios que os bombeiros não precisam, simbolicamente, apagar. João Pedro Rodrigues parte da ideia de que a família de Alfredo já está morta por dentro e que a Covid-19 apenas sacramenta a sua ruína. O diretor propõe renascer uma família (o mais surpreendente, e que faz todo sentido, é ela ser da realeza) a partir de seus escombros seculares, e o personagem Alfredo, simbolicamente, é uma espécie de fogo-fátuo dessa família, um fogo que nasce da combustão dos corpos mortos. Nada mais contrasta com essa decadência que a imagem de um homem negro e gay como presidente da república. São diversidades que o cinema de João Pedro Rodrigues consegue agregar com muita naturalidade e beleza.               
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FANTASMA NEON 


Entregadores que dançam 

Texto de Marco Fialho

"Fantasma Neon" é um dos filmes mais premiados de 2022 e isso é compreensível, afinal a inventividade é a maior característica do curta de Leonardo Martinelli. O filme mistura dança, performances, números musicais, drama, comédia, passinho, forte crítica social entre os seus elementos. Me lembra muito na parte musical ao filme de Juliana Rojas de 2014, "Sinfonia da Necrópole", com os toques melódicos muito próximos à vanguarda paulista dos anos 1980. 

Mas fora isso, "Fantasma Neon" é muito carioca no seu jeito de ser atrevido, leve e solto, mas sempre deixando comentários ácidos como "entregar comida com fome é foda" ou "nem de neon eles enxergam a gente", e depoimentos em off sobre as várias furadas nas quais os entregadores de aplicativo estão sujeitos dia e noite afora. O filme vai caminhando entre a comédia e a tragédia, entre a vida e a morte, entre a leveza e a contundência, em um movimento que pode incomodar a uns e fascinar a outros. O filme caminha sempre se alimentando dos contrastes: ou entre a bicicleta e a motocicleta, ou entre a visibilidade neon das mochilas e a invisibilidade como indivíduos dos entregadores. 

Um dos pontos cativantes desse curta é a presença sempre luminosa e neon do grande ator Silvero Pontes, não esquecendo das inesperadas performances que muito diz sobre a capacidade de resiliência e resistência de nosso povo frente a exploração de um sistema econômico que chama de empreendedores trabalhadores que não possuem nenhum direito trabalhista. Só dançando mesmo para suportar as desigualdades sociais sempre naturalizadas por quem se aproveita da mão-de-obra barata dos desprovidos que precisam trabalhar para sobreviver nesse mundo cão.

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