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COBERTURA DO 6° FESTIVAL "LUGAR DE MULHER É NO CINEMA


Cobertura da mostra Luas, no 6° Festival Lugar de Mulher é no Cinema, que acontece na Bahia (de 05 a 09/2023), na Sala Walter da Silveira e que homenageia a grande atriz Lea Garcia. A mostra traz somente filmes dirigidos, ou codirigidos, por mulheres, cujas temáticas igualmente perfazem o espectro e a visão de mulheres sobre o mundo que vivem. Os filmes privilegiam temáticas urgentes da nossa sociedade contemporânea, como o enfrentamento do estupro, o feminicídio, o machismo estrutural, a transfobia, a religiosidade ancestral, a sexualidade, o assédio, dentre outros que mostram um olhar específico das mulheres sobre o mundo e as relações estabelecidas a partir de uma perspectiva histórica opressora do feminino pelo capitalismo, sistema estruturado por homens brancos. A heteronormatividade também está no foco de muitos filmes, que denunciam práticas e ideias que precisam ser repensadas e transformadas. O Festival "Lugar de mulher é no Cinema" se consubstancia como fundamental por pensar o cinema por esse viés interrogativo e reflexivo, por fortalecer a ideia de que o cinema e o mundo precisam parar e ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre a humanidade. O festival torna-se então um poderoso espelho e um importante instrumento de autoconhecimento, e por isso precisa ser visto por mulheres e homens.
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TODAVIA SINTO
Dir. Evelyn Santos
COTAÇÃO: 7
Impressão: Filme muito sensível que aborda o difícil tema do aborto. A narrativa se coloca imageticamente muito solta, enquanto vozes over quase delineiam um caminho mais preciso, entre discussões, conversas e mensagens trocadas. O filme visa despertar muitas sensações nos espectadores, algumas físicas como o contato com a água, que remete à gravidez e ao próprio corpo feminino, filmados em planos detalhes da pele. Mas há a todo o instante a difícil decisão que envolve diretamente ao futuro da personagem, pois ter ou não um filho causará transformações profundas para os envolvidos, em especial para a mulher. A angústia é o principal sentimento que a diretora Evelyn Santos nos instiga e "Todavia sinto" captura e reconstrói esse momento decisivo que divide tanto as mulheres quanto à sociedade, embora a última não devesse se intrometer nessa escolha, já que esse momento se configura como terrível para uma mulher, que precisa decidir sobre o seu corpo, sua vida e uma outra vida. 
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MANDINGA UM FILME DE RAIDOL
Dir. Adriana Oliveira
COTAÇÃO: 7
Impressão: "Mandinga" é um filme curioso, com uma narrativa toda assentada por uma espécie de videoclipe musical queer, do artista Raidol. O personagem principal é um entregador de aplicativo que ronda uma cidade do Pará (não fica claro qual) realizando entregas inusitadas. "Mandinga" investe nessa inclinação musical paraense, assim como na relação ancestral tanto a indígena quanto a afrobrasileira. Embora a primeira imagem seja a de um quadro de Jesus, o que acompanharemos depois é uma transbordante aventura desse entregador, regada a um ritual sexual e religioso em que prevalece uma energia positiva, uma leveza onde corpos passeiam harmonicamente pela tela, exalando paz e amorosidade. Mais um bom exemplo de como a narrativa cinematográfica pode dialogar com o universo peculiar e múltiplo da música paraense, antes visto também no documentário "Terruá Pará", de Jorane Castro, além de expandir temas em voga, como a da sexualidade e religiosidade contemporâneas. 
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MEDUSA IN.CONSERTO
Dir. Bruna Lessa
COTAÇÃO: 6
Impressão: "Medusa in.conSerto" é um típico manifesto cinematográfico feminista, performático, cômico, diferente, musical, teatralizado (às vezes até demais) e verborrágico. O curta começa com as quatro roteiristas, que também são as atrizes do filme, estudando e atualizando a mitologia de Medusa, o que já expõe o quanto revisionista esse trabalha se anuncia. Interessante ver o mito de Medusa sob uma outra perspectiva e com uma linguagem contemporânea, com direito a gírias e alguns palavrões. A parte do depoimento das atrizes como Medusa é um pouco menos potente do que as outras, assim como a do ritual nas pedras. No todo, as partes musicais são as mais interessantes, e as mais teatrais as menos bem-sucedidas do ponto de vista cinematográfico.
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DAMAS.COM
Dir. Carmen Lopes
COTAÇÃO: 4
Impressão: Documentário sobre quatro mulheres trans que falam de suas vidas diretamente para a câmera. O formato delas se alternando em suas falas cansa o espectador, mesmo que a inserção de trechos animados, utilizados na abertura e numa espécie de transição sobre as falas, alivia o cansaço que o formato enseja, porque fica tudo muito entrecortado, embora as histórias sejam interessantes e diferentes entre si. O que mais torna tudo pouco atrativo são as reiteradas repetições formais que engessam no todo a narrativa do filme, em especial porque já existem muitos filmes que usam esse mesmo formato com depoimentos realizados diretamente para a câmera, como se faz nas entrevistas do jornalismo televisivo. Não se pode negar que "Damas.com" tem um conteúdo super importante, apesar de optar por uma narrativa quadrada e pouco inventiva.
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À BEIRA DO RIO DAS ALMAS
Dir. Taíze Inácia 
COTAÇÃO: 4
Impressão: "À beira do rio das almas" é uma ficção que se assemelha muito a um docudrama. O filme tem muitos problemas na sua concepção narrativa. Há uma voz over insistente que incomoda pelo desejo de tudo traduzir as imagens que vemos, e conceitualmente, uma imagem televisiva que não permite um maior engajamento do espectador ao filme. Os planos são meramente descritivos, não acrescentam camadas à narração, já que carecem de criatividade, mesmo que em alguns momentos a fotografia esboce bonitos planos, mas que precindem de alma. Ainda que a parte musical contemple momentos de beleza, ela se perde em meio a elementos dramatúrgicos pouco atrativos e originais. Esse é um filme que precisava de uma pesquisa mais acurada que desse mais substância à dramaturgia.
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LES DAUPHINS (GOLFINHOS)
Dir. Rubi Demargot
COTAÇÃO: 8
Impressão: "Les dauphins" é um misto de um filme denúncia e sobre um sentimento. A denúncia é contra os métodos utilizados por alguns professores de teatro com o intuito de sublinhar a dramaticidade nas encenações. Mas na prática, esses métodos só revelam uma forma de violência e poder. A protagonista é uma jovem mulher preta, que narra a insatisfação de ter que lidar com essa relação de abuso e assédio. Em português, o título do filme significa "Os golfinhos", animais que domesticados, aprendem com seu mestre em troca de um peixinho. A fotografia em preto e branco sem contrastes diz sobre os sentimentos de opressão sentidos pela protagonista. A câmera na mão não mostra o rosto do professor e está sempre a buscar o rosto da jovem protagonista. Um filme áspero, direto e necessário para se refletir sobre os processos educacionais autoritários.
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ITINERÁRIO DE CICATRIZES
Dir. Gloria Albues
COTAÇÃO: 8
Impressão: "Itinerário de cicatrizes" narra a história dos incêndios criminosos ocorridos recentemente no Pantanal, que afetaram drasticamente a vida dos povos indígenas, da flora e fauna da região. São imagens de animais mortos e depoimentos dos moradores que falam sobre as perdas incontáveis da qualidade de vida e da força da natureza que a cada nova chuva vai reflorescendo. Uma denúncia contundente sobre a ambição de homens criminosos que contrastam com os rostos em close da população local que resistiu ao pior momento. Foram milhões de animais, os mais variados foram mortos, um verdadeiro genocídio na rica fauna do Pantanal, um dos maiores biomas do planeta. As imagens aéreas feitas por Gloria Albues são impressionantes, revoltantes, tristes, tocantes, e de certa maneira, despertam um sentimento de desesperança profunda na humanidade. Esse é um documentário impactante onde a voz em off da população comove pela simplicidade e verdade em sua emissão enquanto assistimos imagens de grande destruição. A maior esperança vem justamente dos depoimentos dos povos originários, sempre impregnados da sabedoria ancestral.
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A ESPERA 
Dir. Ana Célia Gomes
COTAÇÃO: 3
Impressão: "A espera" narra um imenso caminhar pelas praças, ruas, estradas e campos sob o ponto de vista dos cachorros. Durante mais da metade do filme é isso que vemos, uma câmera baixa filmando trajetos realizados pelos cães. Até que dessas imagens dá para extrair alguma poesia, mas que por se prolongarem em demasia, acabam ficando um tanto enfadonhas. Entretanto, no momento em que o texto poético adentra no filme, tudo tende para o limite do insuportável. Isso porque a poesia se revela frágil em sua construção métrica e vernacular e torna o que já era complicado, algo caótico. Nem a sequência final com imagens de cachorros fofos, consegue aliviar a realidade de que os elementos que compõe o filme não se articulam satisfatoriamente entre si. 
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NÃO CORPO
Dir. Maria Andris
COTAÇÃO: 4
Impressão: "Não-corpo" almeja ser uma performance poética sobre um corpo de mulher trans, mas em sua cíclica jornada, a combinação música, câmera e performance da atriz infelizmente não chega a dar a liga pretendida. A escolha da música também não ajuda na jornada ao dar um tom quase fúnebre à encenação. Algo incomoda na perspectiva adotada pela diretora Maria Andris, essencialmente o tom passivo, de uma silenciosa aceitação de que esse corpo não está circunscrito pela heteronormatividade. Se o tema sobra em relevância, afinal discutir o corpo trans cinematograficamente é para lá de necessário e potente. Mesmo assim, apesar da urgência do tema, o filme não consegue abrir um diálogo com o público, apenas acaba o apresentando, ficando apenas preso em uma performatividade fria e insossa, graças a uma fotografia que pouco dialoga com os cenários e com a atriz.
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FLOR DE MURURE
Dir. Marcos Corrêa e Priscila Duque
COTAÇÃO: 8
Impressão: "Flor de Murure" é uma paródia política, performática, candomblecista e não binária, vinda do Pará e serpenteada pelo molejo fogoso do Carimbó. A narrativa ora se esquiva pela cativante sonoridade de uma locutora arretada de rádio, ora pela própria canção de um carimbó. Há na encenação uma predominância do elemento performático que se põe acima do próprio enredo, ainda mais que o filme de Marcos Corrêa e Priscila Duque tem uma camada simbólica potente para denunciar o feminicídio e o transLGBTIcídio em sua sucinta trama, que termina com uma cômica vingança. As cores desse filme saltam aos olhos pela beleza e combinação, ainda que algumas mensagens políticas explícitas inseridas soam dispensáveis e implícitas durante a trama (além de uma inserção publicitária do distrito de Icoaraci, em Belém). Bem surpreendente o utópico início, com um coletivo de mulheres na Presidência da República e Gabi Amarantos como Governadora do Pará. O Pará, cada vez mais, mostra que realmente está na vanguarda do Brasil e em busca de uma linguagem bem própria, tendo a música local como um elemento fundamental na construção narrativa do enredo.
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CACICA - FORÇA DA MULHER XAVANTE
Dir. Jade Rainho - codireção Cacica Carolina Rewaptu e com direção artística e musical de Estela Ceregatti
COTAÇÃO: 10
Impressão: "Cacica", filme lindo, com imagens muito bem produzidas e com uma sensibilidade telúrica impressionante. Cacica Carolina Rewaptu é uma personagem única e iluminada. Ela vai narrando em voz off suas ideias, seus sentimentos e sua aptidão para o existir singelo. A música enigmática e penetrante de Estela Ceregatti vai nos envolvendo em uma teia. São duas vozes inebriantes: a da Cacica, que inspira doçura, e a de Estela, a embalar tanto o filme quanto nós espectadores. Na narrativa, Carolina Rewaptu conta parte de sua trajetória e da sua aldeia. São ensinamentos de vida e ideias assentadas na ancestralidade xavante, além da força incansável para lutar pela cultura de seu povo, que habita na região da Chapada dos Guimarães (MT). Cada fala sua, irradia o poder feminino, como uma semente a florir o que está em volta. Lindas as cenas de reflorestamento e de consciência do papel dos povos originários para a humanidade. Um filme que ilumina com imagens, sons e falas graciosas e inteligentes, mas sem esquecer de denunciar as mazelas da história de opressão dos homens brancos. Uma dádiva de filme.
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TIA ZEZÉ, PRESENTE!
Dir. Carolina de Cássia
COTAÇÃO: 5
Impressão: "Tia Zezé, presente!" é um típico filme de família. O filme visivelmente não dispôs de muitos recursos para ser feito, e se sustenta muito no carisma da protagonista, mesmo assim, a diretora Carolina de Cássia conseguiu reunir um material bem expressivo da tia. O papel de Tia Zezé para o desenvolvimento da família é imenso, desde o trabalho na casa de ricos que exploraram a força de seu trabalho dos 12 aos 20 anos. Sua presença foi fundamental na alfabetização da família e na manutenção das tradições ancestrais, como o jongo. Talvez com uma equipe maior, a diretora conseguisse organizar melhor o material que dispunha e realizar uma montagem mais eficiente, que amarrasse melhor os acontecimentos da vida de Zezé.
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NUNCA PENSEI QUE SERIA ASSIM
Dir. Meibe Rodrigues
COTAÇÃO: 6
Impressão: Esse é um filme que se encaixa numa tentativa de autodescoberta da diretora Meibe Rodrigues. Há nele uma certa inconstância, mas que se deve ao fato dela registrar fatos e episódios soltos no tempo, embora todos estejam ligados a sua ancestralidade ou são momentos relacionados ao passado. Desde o acompanhamento do pai, já idoso e doente até lembranças da mãe já falecida. Ficamos na dúvida a todo o tempo de qual seria realmente o foco central do filme, mas aos poucos vemos que o central é a vida dela com os pais, de um país cuja história relegou aos pretos a vida dura e às mulheres o estupro e a violência. Por isso, se justifica a frase contundente de abertura, cujas palavras fortes de Conceição Evaristo servem de base para o que veremos: "A nossa escrivivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos." 
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TORTA DE LIMÃO
Dir. Vitória Mantovani
COTAÇÃO: 4
Impressão: "Torta de limão" trata de um dos temas mais delicados que envolvem as mulheres, a possibilidade da gravidez após serem vítimas de um estupro. Apesar do tema ser muito difícil, pois é muito doloroso para as vítimas ter que abordar com qualquer pessoa sobre a violência sofrida. A diretora Vitória Mantovani opta por caminhos dramatúrgicos muito convencionais, deixando quase tudo explicado nos diálogos, dando pouca margem para que as imagens deixem algo a ser pensado pelos espectadores. As interpretações tanto de Thaís Almeida como a protagonista Nanda (dona de um restaurante) quanto de Priscila Esteves como Sofia, sua funcionária e crush não comprometem, embora as maiores limitações estejam no roteiro e na direção, ambos sem muito brilho de Vitória Mantovani, que não conseguem fugir das situações mais banais, pois fica pairando no ar que basta uma pessoa compreensível e amorosa ao lado para tudo ficar bem novamente. Evidente que o filme não pretendia isso, mas infelizmente foi para esse caminho que a dramaturgia acabou indo e nos entregando algo não muito original e pouco reflexivo. O próprio simbolismo da torta de limão se perde nesse turbilhão de uma visão em que o mundo cor de rosa de duas mulheres lésbicas de classe média termina por se impor às dificuldades reais da vida.
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RESERVADO 
Dir. Ana Amélia Arantes
COTAÇÃO: 6
Impressão: "Reservado" mostra a perspectiva de uma mulher trans, Sol Markes, no uso dos banheiros públicos, ainda vistos do ponto de vista binário, sem a preocupação com as pessoas trans e não binárias. O filme é curto e bem direto. Sol relata algumas experiências em banheiros tanto masculinos quanto femininos e expõe a dificuldade de se sentir à vontade em ambos. No campo das imagens, vemos vários planos fixos e encenados, como fotografia still, de um banheiro público. No que tange às emoções, o medo é o sentimento predominante, com Sol entrando no banheiro e se fechando nas cabines até não ter ninguém mais no banheiro. Sol discorre ainda sobre estratégias de uso para tentar quebrar o gelo nas relações interpessoais no ambiente. O filme não busca depoimentos de outros frequentadores, prefere centrar apenas na visão de Sol, o que é uma escolha bem interessante.
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ESSA TERRA É MEU QUILOMBO
Dir. Rayane Penha
COTAÇÃO: 5
Impressão: "Essa terra é meu quilombo" parte de vários depoimentos de mulheres do interior do Amapá, região de Curralinho e Curiaú sobre as suas relações com a terra, em especial no desenvolvimento de hortas. Falam da luta pela terra de seus descendentes e do amor pela agricultura e da preservação de tradições. Apesar de ter bons personagens em mãos, a diretora Rayane Penha não consegue extrair um conteúdo que crie um sentido maior ao documentário. São informações e falas que ficam dispersas pelo caminho, deixando apenas o amor à terra das mulheres dessa região. Além dos depoimentos, vemos também alguns personagens andando pelos seus terrenos. 
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CÉU 
Dir. Valtyennya Pires
COTAÇÃO: 9
Impressão: "Céu" é um documentário em homenagem à memória da ceramista, ativista quilombola e líder comunitária Maria do Céu, vítima de feminicídio. O filme é envolto de uma imensa emoção, filmado em parte na Associação Comunitária das Louceiras Negras da Serra do Talhado, Santa Luzia (PB), com a família e as amigas de Céu. Os depoimentos são fortes e as personagens enaltecem o papel de Céu para o coletivo, da ajuda incansável a quem precisava. A primeira cena é linda: a câmera vem do céu e encontra um lindo jarro feito por Maria do Céu, um objeto muito jeitoso. O filme narra a história de Céu que se mistura com a própria comunidade da Serra do Talhado. "Céu" é um documentário especial e emocionante sobre uma personagem fundamental, colaborativa e voltada para as necessidades de sua comunidade. Um dos pontos altos é o depoimento de Jovelina, que entoa um lindo cântico religioso. Outro ponto forte é quando sua prima Zezé chora ao lembrar do feminicídio do qual Céu foi vítima. A mãe colocando as flores no jarro que vimos lá no início é uma delicada homenagem à memória de Céu. Uma pintura de filme.
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IMÃ DE GELADEIRA
Dir. Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo
COTAÇÃO: 6
Impressão: "Imã de geladeira" é um filme que se enquadra no cinema fantástico e se passa na periferia de Aracaju. Pode-se dizer que a geladeira funciona como uma espécie de elemento simbólico na trama, que diz muito sobre a situação de vulnerabilidade de brasileiros que residem na periferia, no caso aqui, um casal de pretos cuja geladeira velha enguiça de vez. Na trama, fenômenos estranhos acontecem, largamente inspirados na ficção científica, com personagens sendo abduzidos por uma força enigmática vinda da geladeira. O roteiro força determinadas situações, como o enguiço da geladeira do casal e a abdução, em paralelo, da geladeira possuída sabe lá por qual força misteriosa. A geladeira, ou seria o ímã, parece conferir um tipo de poder Black Power. Há nessa metáfora uma boa dose de humor, é evidente, ligada ao poder da população que vive ali sempre no limite, numa eterna corda bamba, de precisar buscar forças sobrenaturais para sobreviver no mundo cão, cujo os grandes beneficiários estão se lixando para os que moram no eterno aperto. Isso não deixa de soar interessante.
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JOANA DAS MULHERES DE NEGÓCIOS
Dir. Nilza Lima
COTAÇÃO: 3

Impressão: O título do filme vem da estação de trem em que várias mulheres organizam uma feira para poder ganhar algum dinheiro e assim garantir suas sobrevivências. Falta a esse documentário uma forma mais criativa para expor o seu tema. Ficamos assistindo a depoimentos das comerciantes sobre a visão delas da feira e a importância dela para a vida de cada uma. Fica ainda no ar um clima de que somos todas empreendedoras, e não subempregadas (elas chegam a dizer um discurso decorado sobre acreditarem que são empreendedoras), em busca de sobrevivência, e a diretora busca depoimentos de redenção, depois que a feira passou a dominar a vida delas. Subempregadas efetivamente dialoga com a realidade dessas  mulheres, e se caracteriza como uma forma de exploração da mão de obra das trabalhadoras, pois elas comercializam produtos fabricados por outrem. Voltando à forma do filme, a música colocada entre as entrevistas também colabora para um marasmo narrativo, que predomina durante a projeção e dificulta uma fruição mais orgânica do conteúdo.
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A HUMANIDADE QUE ME RESTA
Dir. Kiesa Fran Nascimento
COTAÇÃO: 4
Impressão: O filme pode ser visto como uma visão pessimista, ou se preferir, com excessivas doses realistas. Pode ainda ser visto como um alerta a preconceitos como o racismo, a gordofobia ou à feiúra (apesar dessa ser socialmente um desdobramento das outras duas). Mas confesso que o filme não me ganhou, pois essa prevalência de uma visão que vê o mundo apenas de maneira negativa, sem abrir uma brecha para a luta antiracista, gordofóbica ou até mesmo contra os valores de beleza socialmente aceitos, que são construídos e instituídos cotidianamente, pela grande mídia, seja ela televisiva, da internet ou de revistas de modas e famosos. A fotografia igualmente não me disse nada, chega a ser óbvia em seu subjetivismo exagerado, embora a ausência de cor soe coerente com a proposta. Mas mesmo assim, fiquei com uma pergunta me martelando: afinal, quem está equivocado, o mundo com sua exclusão ou a personagem que aceita tudo e encara a vida com sua autocomiseração? De certo, todos nós temos lá nossos dias de desacreditar em nós mesmos, e o filme mostra isso, uma mulher jovem com uma indignação, embora na prática, essa atitude enseja um imobilismo paralisante.
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ANA RÚBIA
Dir. Diego Baraldi e Íris Alves Lacerda
COTAÇÃO: 6
Impressão: "Ana Rúbia", uma produção do Mato Grosso, mostra a luta carinhosa da personagem-título pelos direitos das mulheres trans por meio de um livro que quer colaborar para que a transfobia seja diminuída socialmente. É um trabalho de formiguinha, desde palestras para lançamentos em igrejas (locais tradicionalmente homofóbicos e transfóbicos) até em universidades. O filme não tem planos exuberantes nem grandes arroubos de linguagem, muito pelo contrário, a parte técnica é simples, mas funcional. O filme cumpre bem a ideia da necessidade de se discutir abertamente o tema para tirá-lo da invisibilidade e trazer para luz um tema ainda cercado por muitos tabus.
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MÓRULA
Dir. Cristal Obelar
COTAÇÃO: 4
Impressão: "Mórula" se constrói com uma jovem mulher narrando a sua experiência para retirar um bebê indesejado e o direito de levá-lo para casa e dar a ele um enterro digno. A narração é sempre ouvida em uma voz em off enquanto vemos imagens dela nua deitada com uma flor no ventre ou enquanto vemos um médico retirando diversas agulhas de um pote esterilizado. O relato possui sim uma contundência, já que é fruto da experiência de uma mulher que passou por aquela situação. Pena que tudo seja muito linear na narração e pouco explorado em termos de imagens, o que faz o filme perder bastante enquanto cinema, mesmo que valha enquanto depoimento. 
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