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ATÉ AMANHÃ (2022) Dir. Ali Asgari

Uma heroína, um bebê e um sistema opressor 

Texto de Marco Fialho

"Até amanhã", de Ali Asgari, é mais uma boa mostra da eficiência e maturidade do cinema iraniano. Desde o sucesso dos filmes de Asghar Farhadi ("A separação", "O apartamento" e "Passado" ) o cinema iraniano deu uma guinada para o realismo social, com tramas bem cotidianas, filmadas sempre para ressaltar ações físicas dos personagens, quase como um documentário a registrar a dinâmica corriqueira da sociedade iraniana. 

O drama de "Até amanhã" vai se avolumando cena a cena, na medida em que a personagem da jovem Fereshteh (Sadaf Asgari), uma estudante vinda do interior, que para pagar as contas precisa trabalhar em uma gráfica em Teerã, mas em uma emergência tem que deixar o filho com alguém, para evitar que os seus pais descubram a existência do bebê durante uma visita que farão à filha. 

Ali Asgari se utiliza de uma sucessão de plano-sequências para narrar com a devida força a saga sofrida pela jovem Fereshteh. O diretor aproveita o realismo para denunciar a hipocrisia e a opressão de uma sociedade que embora avançada tecnologicamente (os celulares, carros dão essa medida) e urbana, se mostra profundamente hierarquizada e com leis retrógradas que colocam as mulheres como vítimas permanente de agressão perante uma sociedade dominada pela masculinidade tóxica. 

Fereshteh precisa dar carinho e proteção à filha recém-nascida e dar conta do emprego, do estudo e dos abusos do Estado. Um diretor de hospital tenta estuprá-la em troca de um favor, e não bastando este absurdo, ela tem que conviver com a indiferença e os afazeres das pessoas a sua volta. Fereshteh conhece de uma só vez tanto a opressão das leis patriarcais do Irã quanto a impessoalidade típica do regime capitalista, que assoberba as pessoas de atribuições, não dando margem para uma vida social saudável. 

"Até amanhã" é um filme forte, que sabe transitar frontalmente pelos temas cruciais e contraditórios, como o do desamparo e o da coragem de encarar o sistema de frente. Podemos dizer que Fereshteh é uma típica heroína do mundo contemporâneo opressor. Um filme que sabe ir no ponto, e é arguto ao cutucar as feridas abertas do frágil sistema político iraniano.   

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