Texto de Marco Fialho
O longa documentário "Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre" aborda a saga do cinema de Porto Alegre dos anos 1980 (Deu pra ti, Inverno e Coisa na roda) a Tinta Bruta (2018), baseado na pesquisa de doutorado do próprio diretor Boca Migotto. Por meio de muitos depoimentos, o filme vai acompanhando as diversas fases do cinema de Porto Alegre, desde a primeira fase do super-8, em que a turma da posterior Casa de Cinema de Porto Alegre arriscou os primeiros passos, em especial Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, numa espécie de movida cultural (para além do cinema) ou como uma nouvelle vague gaúcha, essencialmente urbana nas temáticas e cheia de experimentos narrativos.
A entrada de Jorge Furtado para o grupo colaborou para redefinir papéis, já que o mesmo vinha da televisão, trazendo uma linguagem mais ágil e uma pegada clássica. Com a Era Collor, o barco do cinema brasileiro foi a pique e sobrou apenas a lei do curta como única política pública de financiamento para o cinema. Com "Ilha das flores" (1985), Furtado botou o cinema do Sul em evidência no Brasil e no mundo e criou uma escola que marcou a década de 1980 e as décadas posteriores, consolidando as transformações iniciadas anos antes com "O dia que Dorival encarou a guarda" (1983), curta inteiramente filmado em estúdio.
Mas Migotto mostra como a geração de 95, que volta ao Super-8 para fazer filmes mais inventivos em termos de linguagem do que a geração anterior, enfrenta com ousadia o fazer cinematográfico mais convencional e que os fez abrir um conflito aberto com a geração da Casa de Cinema de Porto Alegre, encarado e denunciado por eles como comercial em demasia. O documentário lembra da fundamental chegada de Beto Brant de São Paulo como elemento decisivo para mostrar novas formas de produção, com "Cão Sem Dono", de 2006, adaptação do livro do romancista Daniel Galera. Em 2007, Gustavo Spolidoro filma "Ainda Orangotangos", em ousado plano-sequência, também chamando bastante atenção de quem estava a buscar novidades no panorama cinematográfico gaúcho.
Outros marcos cruciais são os filmes de estrada, de deslocamento, em que os personagens se punham em constante processo de aprendizado e experimentação. São filmes como "Dromedário no asfalto" (2014) e "Morro do céu" (2011). No mesmo período as produções gaúchas assumem um viés mais contemporâneo e voltam a ser vistas fora do espectro gaúcho, com personagens mais introspectivos e melancólicos, em obras como "Castanha" (2014), Rifle (2016), ambos de Davi Pretto e os filme da dupla Felipe Matzembacher e Marcio Reolon, "Beira-mar" (2015) e "Tinta Bruta (2018), sem esquecer de "Mulher do pai" (2016), de Cristiana Oliveira, que redefiniu o filme de fronteira. São filmes que colocaram o Rio Grande do Sul novamente no cenário internacional e nacional.
O documentário termina com a análise de críticos salientando o quanto o cinema gaúcho se consolidou a partir dos anos 1980, como sendo de classe média, branco, masculino e com pouquíssimos negros e mulheres como diretores, e embora o sucesso da Casa de Cinema de Porto Alegre foi crucial, reafirmou um cinema mais clássico e convencional. Somente no começo do século XXI que operou uma mudança radical, com produções que rascunham uma Porto Alegre no purgatório, que refletia um contexto mais sombrio e pessimista, onde "Tinta bruta" foi um ótimo exemplo. Foi então se reforçando a ideia de que o cinema deve ser impreterivelmente uma arte que deve ser um inferno para os detentores do poder e deixá-los temerosos com o poder que essa arte carrega.
"Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre" consegue fazer um painel bem amplo, de um cinema que em 40 anos, pouco dialogou com o país, que muito se fechou em si mesmo, mas que nos últimos anos vem reestabelecendo esse elo com o restante do país, como bem frisou o realizador Felipe Matzembacher: "sou brasileiro e quero ser visto assim". O documentário consegue, com eficiência, olhar para esse cinema sem condescendência, o que é importante nesse tipo de proposta retrospectiva.
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