Pular para o conteúdo principal

OCTÁVIO III - O IMPERADOR (2023) Dir. Cavi Borges


Memórias sopradas a esmo de um certo Imperador que cultuava João Gilberto e Sganzerla

"Medo da morte, não! Horror! Horror da morte! Horror por ela ser o que é, ou pelo inevitável." 
                                                                                             Johann Wolfgang von Goethe 

Texto de Marco Fialho

O primeiro registro que preciso fazer após assistir a "Octávio III - o imperador" é a paixão e a verdade com que o diretor Cavi Borges trata o seu personagem. São imagens envoltas em afetos, emoções que saltam da tela para a plateia. Há uma admiração explícita e que se explicita a cada imagem que vivenciamos, um exalar constante de sensações que transborda e nos toma como espectadores. 

Quem acompanha a trajetória de Cavi Borges sabe da admiração e do culto que ele promove aos diretores e artistas que possuem uma história de glórias, principalmente no cinema, mas personalidades que muitas das vezes são esquecidas pelo passar do tempo, em especial em um meio profissional sempre em busca novas atrações para se vender na esquina mais próxima ou em um streaming qualquer. Mas Octávio Terceiro não era exatamente um diretor de cinema, nem um músico ou cantor, mas sim uma figura insólita, que transitou belamente por ambos os mundos, tanto o da música quanto o do cinema, seja como produtor, ou simplesmente como um espírito inspirador nos sets de filmagem, como bem lembra Sérgio Ricardo em sua conversa com Octávio Terceiro. 

"Octávio III - o imperador" é um documentário tocante, que Cavi tece com cuidado e carinho. O filme se divide em duas partes, uma em que Octávio visita lugares onde conheceu artistas basilares da nossa cultura, como João Gilberto, Pixinguinha, Roberto Carlos, Geraldo Vandré, Tom Jobim e Rogério Sganzerla, apenas para citar alguns, e uma segunda parte, com Octávio já falecido, onde Felipe Cataldo assume o protagonismo para lembrar dos últimos e difíceis momentos do final da vida de Octávio Terceiro. Vale lembrar, que Cataldo também fez a pesquisa de imagem do filme, portanto pode-se atribuir a ele um enorme conhecimento de fato sobre o personagem, e uma grande contribuição para a feitura do documentário, além de ser a pessoa mais próxima de Octávio nessas horas de dificuldade. 

"Octávio III - o imperador" é, sobretudo, um filme sobre os encontros de Octávio, um documentário sobre as suas memórias, que o coloca como narrador da própria vida. Cavi roteirizou o filme junto ao pesquisador e crítico João Lanari Bo, e promove a protagonista um personagem que muito viveu a maior parte da vida como coadjuvante, muitas vezes nos bastidores, sem aparecer de frente, mas permitindo que grandes artistas pudessem ter a devida visibilidade e merecido reconhecimento do público. Só mais ao final da vida, Octávio Terceiro se dedicou mais à carreira de ator, tendo atuado em muitos filmes, sobretudo depois de dois trabalhos com o professor e diretor Ricardo Miranda. O ofício teve continuidade, com os alunos do professor Miranda também o adotando como ator. O próprio amigo Cataldo depois o promoveu a protagonista em seu longa, só finalizado em 2021, após a morte de Octávio.

Mas podemos dizer que as histórias de Octávio Terceiro são, no mínimo, fantásticas. A maneira como foi conhecendo e se relacionando com grandes figuras da música e do cinema parecem histórias de ficção. As conversas com o genial Pixinguinha na Wiskeria Gouveia, na Travessa do Ouvidor, onde firmaram amizade, para posteriormente o destino promover um encontro do mestre do choro com o futuro lendário João Gilberto, à época desconhecido do público, oportunidade onde tocariam juntos a música "Lamento" (ainda sem a letra de Vinícius de Moraes). Muito interessante como Cavi Borges incorpora nesse filme uma atitude, bem inspirada na nouvelle vague francesa, em que a filmagem acontece em meio a vida da cidade, as pessoas passam inclusive em frente ao entrevistado, e numa delas, dois policiais passam lentamente enquanto Octávio Terceiro não esconde um sorriso em relação a cena. É o cinema flertando com a própria cidade, isso é uma beleza de se ver.

Entretanto o filme não cita apenas essa história de Octávio Terceiro com Pixinguinha, promove muitas outras ao convidar Octávio Terceiro a passear pelas ruas do Centro e Zona Sul, sempre com ele relembrando histórias com Dorival Caymmi e Tom Jobim, em papos evocados a partir de suas estátuas praianas, onde o tom nostálgico dita o ritmo das cenas, ou no bar e nas ruas de Copa, quando lembra dos trabalhos com Rogério Sganzerla em "Nem tudo é verdade" (1986) e "O signo do caos" (2005), enquanto ouvimos ao fundo "Mr. Sganzerla", com Gilberto Gil, cena muito inspirada em "Copacabana Mon Amour" (1970), do próprio Sganzerla, com a câmera solta flagrando a beleza das ruas em sua leveza cotidiana.

Dentre todas as histórias, a do encontro com Roberto Carlos é uma das mais inusitadas, desde a primeira conversa até a inserção do cantor em uma programação de TV, mas que muito diz sobre a personalidade desse enigmático personagem que é Octávio Terceiro, comunicativo, altivo e colaborativo, quase um personagem ficcional. O forte aqui não é a pessoa, mas o personagem que Octávio se metamorfoseia em suas aparições. Quando vemos ele com Sérgio Ricardo é isso que novamente constatamos, a força da presença do personagem, que chega a cobrar do compositor/cineasta a presença de seu nome em um crédito de filme. As duas cenas mais bonitas do filme estão referenciadas por Sérgio Ricardo. Em uma delas, Octávio Terceiro propõe que use a linda balada "O nosso amor", Sergio Ricardo como trilha para o encontro deles. Em uma outra, no final, a imagem de Octávio Terceiro é fundida ao piano elegante de Sérgio Ricardo, para logo depois ir se esvaindo poeticamente.     

Mas entre as aventuras de Octávio, a que mais impactou o filme de Cavi Borges foi a sua morte, que dá ao documentário um outro rumo, obrigando ao próprio Cavi ter que comunicar a morte inesperada que impossibilitou a continuidade das histórias ainda a serem registradas pelo próprio. A solução de Cavi Borges acabou sendo interessante. Primeiro por quebrar a narrativa e se colocar como diretor, falando diretamente para a câmera, isto é, para nós espectadores, depois, por permitir que através de Felipe Cataldo se abrisse uma discussão acerca do final de vida de Octávio, que na verdade é a de tantos artistas, e também não artistas, por mostrar o desamparo do poder público, incapaz de fornecer um atendimento médico adequado à população.

Mas restava ainda para Cavi os registros realizados para o curta "Fausto de Octávio III", de 2019, em que ele aproveita para trazer reflexões sobre a morte. Nas imagens são três Faustos que se encontram, o de Goethe, o de Murnau e o de Octávio Terceiro. Nesse embate de interpretações, eis que somos agraciados com pérolas goethianas como "que a morte me desmembre em outro, ou eu fique nada de nada, ou de tudo. E acabo enfim essa consciência oca, que desistir me resta." Mas nessas imagens há uma beleza incomparável e original, a de Octávio Terceiro como intérprete desses fúnebres poemas a demarcar o tema que é a mais cara ao documentário de Cavi, o encontro de seu personagem com a morte.      

Apesar de durar apenas 60 minutos, o documentário de Cavi traz muitas histórias interessantes de Octávio Terceiro, além de muitas reflexões cruciais sobre a vida, ou mais ainda, sobre o viver, a efemeridade do viver, sobre o tempo que não perdoa os corpos, a vida, nem o que fizemos no passado. Resta para o mundo um documentário a guardar algumas memórias do mundo, antes dispersas, mas agora salvas em um arquivo para quem sabe uma pessoa curiosa do futuro explorar nosso passado que pode até soar como algo alienígena para ele, tal como aquele escafandrista que Chico Buarque evoca na sua canção "Futuros amantes".  Uma das importâncias do documentário é justamente essa, a de armazenar uma gota de frescor de uma(s) determinada(s) memória(s), para que ela(s) não morra(m) placidamente com os indivíduos. Quantas memórias já não se perderam e estão passeando a ermo por aí?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...