As vozes sem voz
Texto de Marco Fialho
Se atentarmos para a palavra que está no título, vozerio, logo entenderemos que o cerne da ideia que fomenta o filme de Igor Bastos não são somente as vozes, mas sim como essas vozes se colocam, umas sempre intercaladas à outras. No dicionário, vozerio quer dizer "muitas vozes juntas" e um dos sinônimos possíveis encontramos a palavra algazarra. Vozerio aqui expressa um amontoado de vozes que não se somam, mas que antes de tudo se chocam e se misturam sem formar um sentido audível ou claro. Evidente que há um duplo sentido no título, afinal estamos a falar de dublagem, de umas vozes sobre as outras, embora também vozerio nos remeta a confusão.
O documentário "O vozerio" narra uma história sobre o subterrâneo do mundo das dublagens, suas lutas, desencontros pelos direitos e melhores remunerações para os profissionais dessa área que está presente na vida de todos nós. No início, tudo leva a crer, que vamos assistir aos bastidores do trabalho dos dubladores ou sobre a natureza do ofício da dublagem em si, Apesar do diretor Igor Bastos falar de vários aspectos da profissão dos dubladores, há uma opção por tentar reconstruir o histórico da categoria por meio dos depoimentos dos dubladores participantes do processo difuso, as tentativas de organização, união e reconhecimento.
Igor mostra as dificuldades práticas de união dos dubladores, como as divergências sobre a formação de um profissional (fundamentalmente, se deve ou não ser obrigatório a formação de ator), assim como também traça pelos personagens um histórico da dublagem da ditadura militar aos nossos dias. Creio que a maior contribuição de "O vozerio" seja a discussão sobre os direitos conexos dos dubladores, afinal, não podemos esquecer que a dublagem envolve um dos maiores filões comerciais dessa área de atuação: o cinema de animação, em especial, os filmes das maiores do cinema, como Disney, Fox (essa agora também incorporada pela Disney) e tantas outras. Enquanto os dubladores ganham uma merreca pelo serviço, essas multinacionais (verdadeiros conglomerados econômicos) ganham milhões e milhões de dólares explorando a mesma dublagem em mídias diferentes, sem repassar nenhuma remuneração a mais aos profissionais que emprestam a voz para importantes e famosos personagens.
"O vozerio" mostra as tentativas de formação de entidades de defesa da categoria, mas como o próprio cinema brasileiro, a dublagem vive de eternos recomeços. Só para se ter ideia, hoje, novamente, não há associação que defenda os seus interesses coletivos. Igor Bastos consegue evidenciar as estratégias das majores do cinema para dividir os dubladores, oferecendo ofertas individualizadas para alguns, e assim, desestruturando a luta da categoria. É preciso sublinhar a opção do diretor em denunciar uma realidade dura desses importantes profissionais da cadeia audiovisual, bastante assistida em relação ao público, embora abandonada em seus direitos, em especial os conexos.
"O vozerio" é sim um filme denúncia, fundamental não só por chamar a atenção para um tema invisibilizado, mas também para o poderio e o oligopólio de corporações que sufocam o cinema no Brasil e no mundo. É ainda sobre voz, a falta dela (e não será um documentário o veículo para isso, apenas um alerta para uma ausência dessa voz) e o domínio econômico opressor e cruel para os profissionais aviltados numa determinada condição e impotentes para sair dela. "O vozerio" é por isso urgente, para se pensar acerca dessa injustiça que interfere na própria sobrevivência dos profissionais do audiovisual brasileiro e não só os que atuam na dublagem.
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