A voz potente da ancestralidade das mulheres do vale do café
Uma das coisas mais fascinantes em acompanhar um festival no interior é poder assistir e descobrir a filmes produzidos na própria região, "Mulheres do Vale", dirigido por Beatriz Vidal e produzido por Laysa Costa, é um desses exemplos a ser destacado. Importante salientar o viés do filme em potencializar as vozes de mulheres cruciais para a formação de uma sociedade historicamente patriarcal e excludente em vários aspectos.
"Mulheres do Vale" tem como foco apresentar a cultura da região do Vale do Café sob o prisma de várias mulheres. São muitas histórias narradas sempre por mulheres fortes, que sublinham a diversidade cultural da região. Às vezes, o que vemos são memórias do passado sendo resgatadas pelo presente, mostrando que as tradições resistem pelas ações de personagens femininas fundamentais no semear da cultura do jongo, da capoeira, da folia de reis, da culinária, no reflorestamento, na cerâmica e outras manifestações permeadas pela ancestralidade afro e pelo feminino.
O único senão do filme está no desejo dele de abarcar a multiplicidade do seu tema e acabar por não conseguir se aprofundar tanto em algumas histórias riquíssimas. Nota-se que as filmagens foram realizadas em meio à pandemia e o uso de máscaras em algumas cenas afloram esse difícil contexto perpassado pela produção. Há ainda uma questão que merecia ser melhor trabalhada na montagem, no ato de juntar tantos fragmentos diferentes entre si. A melhor parte é a inicial, quando depoimentos do presente puxam personagens do passado, como Mariana Criolla e Eufrásia Teixeira Leite. Destaque para a fala da professora e historiadora Silvana Nunes (ver a tocante entrevista dela disponível na minha página do facebook), que salienta a importância de se olhar criticamente para a história, em especial para os saberes afrobrasileiros, sombreados pela versão dos vencedores, no caso específico, a dos barões do café.
Mesmo reconhecendo que cada tema abordado merecia um maior aprofundamento, vale muito conhecer ou reconhecer a prática ancestral do jongo manifesta como dança nos corpos negros outrora escravizados, ou se deixar levar pela paixão emanada de cada personagem, como diz uma jovem jongueira: "no jongo eu me sinto eu mesma." Lembro ainda da doceira Nara Moreira, da Doceria Morro Azul, com seus quitutes feitos no fogo à lenha (tradição ancestral local). São falas riquíssimas, que tomam a nossa alma, que trazem uma espiritualidade situada em práticas cotidianas, quase sempre invisibilizadas pelo discurso dominante que se impôs historicamente, escrito pelos vestígios de memória, inerentes às edificações imponentes como as dos casarões, que camuflam a cultura gerada pelo trabalho de homens e mulheres escravizados que colocou tudo isso de pé.
"Mulheres do Vale" é formado por mosaicos curtos, que podem ser vistos como riquezas fractais, conectadas pela mesma raiz histórica e cultural. Se cinematograficamente, o filme revela algumas fragilidades, em especial na montagem e na organicidade dos temas, os depoimentos de mulheres culturalmente engajadas presentes no filme o agiganta e potencializa a abordagem, ao salientar um olhar voltado para uma cultura popular que resiste à narrativa escravocrata. Esse documentário permite o resgate de vozes e práticas fundamentais, que revelam as contradições de uma sociedade construída pela lógica da exclusão e da resistência possível da maioria da população subjugada pelos donos do poder. Só de ver e ouvir essas vozes potentes já valeu muito à pena.
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