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MARIA - NINGUÉM SABE QUEM SOU EU (2022) Dir. Carlos Jardim


Uma carta de fã engessada

Texto de Marco Fialho

Para os fãs de Maria Bethânia, o documentário "Maria - ninguém sabe quem sou eu" vai causar uma sensação contraditória. Se por um existe a felicidade de ver a cantora em cena com sua exuberância contumaz se apresentando em imagens de arquivo, por outro, há uma decepção pelo fato do título não entregar o que prometeu: revelar algo desconhecido dela. Para quem acompanha Bethânia por anos a fio, poucas informações novas vai realmente levar ao final da sessão. 

Outro fator decepcionante é o formato escolhido, que vai se repetindo sequência a sequência e engessa por demais a narrativa do filme, com Bethânia falando no palco de um teatro sobre a sua vida (em uma filmagem que lembra muito as entrevistas do semanário Fantástico, da Rede Globo), sempre seguida de uma música ao vivo e uma declamação de um poema. Incomoda também a maneira como os poemas são inseridos, sempre com a voz em off da grande Fernanda Montenegro. Essas leituras quebram um pouco o fluxo narrativo, já que interrompem a fala de Bethânia para colocações sobre ela de importantes nomes de nossa cultura, como se Bethânia precisasse dessas vozes para o público entender sobre a sua grandeza.   

Mas realizar um documentário sobre Maria Bethânia assegura alguns bons resultados cinematográficos, um deles é a garantia de se ouvir música boa do começo ao fim. E elas são muitas, desde músicas antigas até as mais atuais. Nesse ponto, a pesquisa de Luciana Savaget funciona, pois os números musicais são bem escolhidos, apesar de nunca serem completos. São pouco mais de 30 canções que podemos assistir no filme, claro que muitas ficaram de fora, afinal a carreira artística longeva de Bethânia seria impossível de trabalhar todas as música importantes, mas dói não ouvir, por exemplo, "Alguém me avisou" (Dona Yvonne Lara), um dos grandes sucessos de Bethânia. 

Mesmo que o depoimento de Maria Bethânia a partir de um único lugar, um palco, soe excessivamente convencional "Maria - ninguém sabe quem sou eu", não podemos esquecer que quem está a falar é uma mulher potente, uma das vozes com mais personalidade e convicção sobre o que faz e pensa sobre si mesma e o mundo. Impossível não se sensibilizar com o olhar de Bethânia, sempre convicto, certeiro. Vários discursos são preciosos, como o que ela compara a sua presença no palco com o trabalho do trapezista, lugar da imprevisibilidade, onde todas as energias fluem, como diz Bethânia, "um altar, um lugar de entrega". Carlos Jardim aproveita bem o fato de ter uma câmera de segurança e solta uma outra para captar gestos e detalhes de Bethânia.       

Algumas sequências musicais são bem editadas e caem bem, como a canção "Iansã" (Gilberto Gil e Caetano Veloso) entrar depois da fala sobre o sentimento que é estar no palco. Interessante a parte em que Bethânia fala da constatação de seu sucesso popular e ouvimos "Explode coração" (Gonzaguinha) e a sequência dos pais, onde canta Luis Gonzaga com a mãe à capela. E claro, quando fala de Caetano ter sido seu grande professor da vida, de lhe ensinar desde as coisas mais elementares, como subir em uma árvore, a identificar os frutos até lhe mostrar as canções que devia conhecer e ouvir, e hora em que diz ser Caetano "o mestre do meu barco", referência explícita ao candomblé. 

O documentário tem alguns bons momentos, como o de Chico Buarque e o célebre show deles no Canecão, a da leitura de Bethânia com Mia Couto e de quando esclarece a sua maneira de discursar sobre política ou ainda quando fala da ação do tempo sobre o seu corpo e a decisão de jamais fazer intervenções cirúrgicas ou algo do tipo. Ela diz "gosto que o tempo conte a sua história a partir de mim", enquanto ouvimos em paralelo "Oração ao tempo" (Caetano Veloso). Mas algo estranho acontece no final. Fica a impressão de que o diretor Carlos Jardim não quer terminar o filme, algo compreensível, afinal é um fã declarado de Bethânia, e assim, vamos assistindo a vários possíveis fins, sem que ele efetivamente chegue tão rápido. Ao final, fica a homenagem, sincera, mesmo que atravancada aqui e acolá pelos depoimentos de terceiros pela voz de Fernanda Montenegro. Um filme apaixonado, uma espécie de carta de fã, embora engessado em um formato estabelecido logo nos primeiros minutos, que a cada nova sequência vai se reafirmando até o final.

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