A vida sempre está à espreita
Texto de Marco Fialho
Desde o primeiro e longo plano-sequência que dura doze minutos e meio, "Horizonte", dirigido por Rafael Colomeni, diz para que veio. O filme tem duas partes bem definidas. Na primeira, acompanhamos a dureza da vida de Rui, um homem de 72 anos de idade que viveu poucas aventuras, que leva uma vida sem-graça e sem riscos. Na segunda parte, Rui se lança em uma promessa de nova vida. "Horizonte" pode ser lido por meio desse confronto entre essas duas partes que muito falam sobre a construção desse personagem e da importância do lúdico na nossa vida.
O primeiro plano-sequência fundamenta bem o contexto familiar e o papel de cada personagem nele. Juarez (Ronan Horta), um dono de uma oficina mecânica e um marido que exerce o poder sobre a esposa (Alexandra Richter) e o restante da família. O casal chega para o enterro de Pedro, o patriarca da família, e logo Juarez anuncia que vai morar na casa e expulsa o tio Rui e Junior (um filho que fugiu de casa para morar com o avô quando menino) para a casa dos fundos. Assim, a câmera mostra não só o espaço em conflito como ao mesmo tempo define novas hierarquias familiares para o espaço. O personagem de Rui torna-se protagonista justamente após ser descartado pelo sobrinho. A partir de então, acompanhamos a sua visão da vida opressiva que lhe foi reservada. Os únicos alívios do velho Ruy é um violão (que há muito ele não toca) e a vizinha D. Fia (Suely Franco), uma amiga de longa data e que possui uma quedinha por ele, embora jamais cruze o limite da antiga amizade.
O diretor Rafael Calomeni investe muito no personagem Rui, portanto, no trabalho do ator Raymundo de Souza e se dá muito bem nessa aposta. O trabalho do ator é de pura ourivesaria, de uma delicadeza e grande atenção aos detalhes gestuais e de expressão. Ainda lá na primeira longa sequência, ele entrega olhares instigantes, chama a câmera para si, corporifica o incômodo pela presença indesejável de Juarez, e dá um banho de interpretação, mesmo quando o protagonismo ainda estivesse dividido entre Juarez e sua esposa. Nessa ousada mise-en-scène, a câmera passeia livre pelo espaço da ampla varanda de uma casa humilde, tipicamente suburbana, incrustada no interior de Goiás, mais precisamente em Aparecida de Goiás. Essa é uma família como tantas outras, dividida e oprimida pela presença onipresente e agressiva de Juarez, um homem que fala alto e intimida a todos com o seu autoritarismo.
A segunda parte de "Horizonte", Rui resolve se livrar da sua vida opressiva e vai morar em um projeto social desenvolvido por uma ONG, destinada a pessoas idosas e desamparadas. Ruy é o primeiro morar nesse condomínio oportunamente chamado de Novo Horizonte. Sua vida caminha presa a uma rotina doméstica, até que Jandira, uma mulher solitária muda para a casa da frente. O filme dá uma guinada e de um drama familiar se transforma em um filme romântico, com Ruy tentando seduzir Jandira (uma interpretação precisa da atriz Ana Rosa), uma senhora enigmática que a princípio se recusa a travar um diálogo com ele. Nesse jogo de sedução, a música "Boneca Cobiçada" passa a ser um espécie de guia romântico da trama.
Se o processo da sedução se alonga em demasia, a parte do casal em si é rápida demais, pois, de repente, eles estão juntos, para logo a seguir se separarem, o que marca a volta de Ruy para o bairro antigo e a volta à cena de Jandira, mais uma vez. Todo esse desenlace acontece precipitadamente em um atropelo narrativo. Uma pena, porque até o processo de sedução tudo estava fluindo muito bem, sem açodamentos, em uma montagem que pacientemente inseria informações em espaços de tempo que permitiam ao espectador adentrar na fluência da proposta da direção. Nos últimos quinze minutos de "Horizonte", lamentavelmente, isso é abandonado, e cria-se então, um desnível no ritmo do filme.
Ainda assim, deve-se ressaltar momentos de rara beleza dramatúrgica que "Horizonte" proporciona ao público. Muito interessante assistir a transformação da vida de um idoso e uma idosa por decisões e iniciativas próprias, o que mostra o quanto podemos sonhar, realizar e transformar nossas vidas a qualquer momento, independente das idades cronológicas ou do envelhecimento dos corpos. "Horizonte" parece nos lembrar que a vida está sempre à espreita.
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