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CASA DE ANTIGUIDADES (2020) Dir. João Paulo Miranda Maria


O racismo como mote simbólico de um país esfacelado pela intolerância

Texto de Marco Fialho

Depois de vários curtas-metragens premiados internacionalmente ("A moça que dançou com o diabo", "Command action" e "Meninas formicida"), inclusive no Festival de Cannes, o diretor João Paulo Miranda Maria assombra o mundo com o seu primeiro longa-metragem, "Casa de antiguidades". É muito importante ficar atento a esse diretor vindo de Rio Claro, interior do Estado de São Paulo, como uma indubitável promessa do cinema brasileiro dos últimos anos. Seu estilo seco de filmar surpreende, pois parece um veterano, de tão convicto e firme que seu trabalho se revela na tela grande. 

"Casa de antiguidades" foi escolhido para ser o filme-homenagem ao ator Antonio Pitanga, na noite de abertura do 2º Festival de Cinema de Vassouras, em 16 de junho de 2023, e a escolha não poderia ser melhor. Como bem colocou o próprio Pitanga em seu discurso de agradecimento, esse filme representou o maior desafio da longa carreira e basta assistir as suas primeiras aparições no filme para entender isso. Primeiro porque aqui, Pitanga não faz um personagem falante como habitualmente, o tipo carismático que o deixa bem confortável em cena. Muito pelo contrário, em "Casa de antiguidades" o ator está na posição de desconforto, as falas dele, como protagonista que é, são diminutas, e o foco está nas ações que realiza, no olhar que precisa travar com a câmera, isto é, com nós espectadores. 

Mas o desconforto talvez seja a grande marca de "Casa de Antiguidades", e não é só Pitanga que o sente como ator. Nós somos tomados também por ele, a mise-en-scène está construída para que fiquemos incomodados, desde a primeira sequência, filmada para ser desorientadora, pois não sabemos exatamente aonde o personagem Cristovão (Antonio Pitanga) está, pois o clima estabelecido é o do cinema fantástico. O que vemos é um astronauta? Ou seria um extraterrestre? Ou algum trabalhador que precisa usar uma vestimenta de proteção assemelhada a de um astronauta? Ainda a sequência termina com um plano-detalhe de um furo na roupa branca, inclusive tudo em volta é branco, enquanto ouvimos um som atordoante e crescente. Seria um sonho, um pesadelo ou um universo paralelo? Somos arremessados à duvida, a um terreno regido pela instabilidade. A sequência seguinte o estranhamento não se dissipa, apenas se aprofunda. Vemos Cristovão atônito escutando um senhor em uma cadeira imponente, a esbravejar em uma língua estranha (em alemão), inclusive para nós, já que não há tradução, enquanto uma secretária traduz a longa fala desse senhor, dono de uma indústria de carne de boi.   


Depois, acompanhamos a estranhos rituais em alemão na própria empresa, sempre com a bandeira azul de um movimento para a instauração de um suposto país formado pelos Estados do Sul do Brasil mais o Estado de São Paulo. A cada nova cena vamos presenciando o incômodo desse homem negro que progressivamente vai sentido na pele a arrogância e a discriminação de vários personagens que se dirigem a ele em alemão, para que as diferenças sejam reparáveis. Logo no começo do filme, Cristovão diz: "eu não entendo o que ele diz". Essa é uma espécie de contrassenha para o que veremos a seguir, muita demonstração de intolerância desse povo do interior do Rio Grande do Sul. Ele mora em um pequeno casebre no meio da mata, o que simboliza o isolamento discriminatório e racista que esse personagem enfrenta cena a cena. 

O único lugar de convivência social para além do espaço do trabalho é o do bar. Lá, Cristovão vivencia mais experiências e perseguições. O bar à noite, que é o horário em que ele mais o visita, quase sempre o vemos em uma matiz premonitória avermelhada, como se o sangue estivesse ali como um insistente subtexto da trama. É bom lembrar que a morte paira a todo o momento em "Casa de antiguidades", ela está rondando continuamente no próprio ambiente do trabalho, onde os bois são mortos cotidianamente, como se nos avisassem a presença de uma atmosfera impassível e fúnebre. As crianças locais parecem igualmente imbuídos em propagar e idolatrar à morte. Elas vivem armadas com espingardas de baixo calibre, torturando animais da redondeza, como cachorros indefesos que estão a vagar pelas ruas e florestas.   


Curiosamente, Cristovão vem do interior de Goiás e em sua casa tem vários elementos ligados à tradição popular, de um tipo de boi-bumbá e esse é mais um simbolismo que vai crescendo na trama. A animalidade é um fenômeno presente na história do filme. As mortes estão sempre carregadas por transfigurações e máscaras ligadas a animais. Esse ambiente funesto impregna a tela a cada nova cena. Os alemães vão radicalizando a visão política deles, com uma pregação sem fim acerca de uma ideia de separatismo racista e com inspirações nazistas. De repente, vemos uma pixação em um muro: "volta para casa preto". 

Cristovão vai reagindo a uma série de agressões que vê e recebe crescentemente no dia a dia. Ele se veste dos símbolos da cultura popular para reagir e o boi, sim, o animal que vê sendo morto em série todo o dia no trabalho, vira a máscara ideal para a sua contra-ofensiva. Se antes ele usava o berrante como forma de resistência, agora precisa ser mais incisivo e violento. O bar e o trabalho são escolhidos como lugares de embate, não mais cultural, mas físicos. E como é bom ver Antonio Pitanga nesse registro de ator, mais contido, minimalista, cirúrgico e ainda sim totalmente entregue ao personagem, que ator incrível, que aceita esse trabalho com um espírito juvenil de se desafiar e embarcar em um terreno onde o diretor parece ter um controle do gestual e da expressividade do corpo do ator. 

"Casa de antiguidades" forja um tempo de guerra, um tempo em que um governo fascista abriu o esgoto do universo, mas o filme mostra que embora a violência nasça no campo da cultura, sua manifestação não se encerra ali, ela se expande para os corpos e para a vida, e sobretudo, para uma política de extermínio da diferença. Essa obra não foge da contundência e se reafirma como um golpe de misericórdia de uma época que precisa ser superada, para que o amor ilimitado e sem fronteiras volte a prosperar com força total por aqui. Com "Casa de antiguidades" temos a certeza de que temos um promissor diretor à vista em nosso cenário cinematográfico, e esse diretor se chama João Paulo Miranda Maria.                  

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