Pular para o conteúdo principal

A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022) Dir. Leonardo Mouramateus


O teatro da imprevisibilidade da vida

Texto de Marco Fialho

"A vida são dois dias" é um filme sobre relações humanas e arte, o quanto elas podem resistir ao caos da vida. Durante a projeção fui remetido constantemente a algumas narrativas do cinema português de Manoel Oliveira, em especial um de sua safra final, como "Singularidades de uma rapariga loura" (2009). Mas a forma como os corpos se apresentam, a teatralidade de gestos e ações dos personagens são algo muito próprios de Mouramateus, esse jovem realizador que vem sedimentando um trabalho potente, mesmo que algo de Oliveira esteja ali constantemente evocado. 

Esse viés manoelino merece ser melhor explorado e detalhado. A começar pela graça da maneira cômica de narrar, sedutora e estranha, atenta aos detalhes e repetições, ali encravada entre o teatro e a literatura, em uma narração em off que mais do que contar, comenta com gracejos a história. 

Há um quê de pitoresco nas obras de Mouramateus, um humor jovial, sustentado tanto no cênico quanto na palavra. As palavras soam fortes na dramaturgia de Mouramateus, ela nos aproxima para depois nos afastar, estabelece um jogo cinematográfico interessante, um mix entre ironia e estranhamento, pois aquele mundo é o nosso não sendo, há um pitada lúdica que se interpõe, que nos faz lembrar da encenação. 

Sempre bom reforçar e lembrar de que ideia de duplo já está posto desde o título, embora durante a projeção ela se expanda mantendo uma aura de permanente sedução, nesses gêmeos Orlando e Rômulo (Mauro Soares, também coroteirista com Mouramateus), que se somam pelas diferenças que lhes são inerentes. O que mais seduz em "A vida são dois dias" é mesmo o seu humor constante, debochado perante aos fatos corriqueiros que nos chegam com o toque do inusitado, como o simbólico jogo sobre naufrágios, onde ganha quem perde primeiro ou ainda o insólito enlace entre a música e o acidente, que vai desencadear toda a história e introduzir a performática personagem de Mariah Teixeira. 

A coragem de assumir o insólito talvez seja um dos dispositivos mais potentes da curta e chamativa filmografia de Leonardo Mouramateus, que ainda promete entregar preciosidades no futuro. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...