O teatro da imprevisibilidade da vida
Texto de Marco Fialho
"A vida são dois dias" é um filme sobre relações humanas e arte, o quanto elas podem resistir ao caos da vida. Durante a projeção fui remetido constantemente a algumas narrativas do cinema português de Manoel Oliveira, em especial um de sua safra final, como "Singularidades de uma rapariga loura" (2009). Mas a forma como os corpos se apresentam, a teatralidade de gestos e ações dos personagens são algo muito próprios de Mouramateus, esse jovem realizador que vem sedimentando um trabalho potente, mesmo que algo de Oliveira esteja ali constantemente evocado.
Esse viés manoelino merece ser melhor explorado e detalhado. A começar pela graça da maneira cômica de narrar, sedutora e estranha, atenta aos detalhes e repetições, ali encravada entre o teatro e a literatura, em uma narração em off que mais do que contar, comenta com gracejos a história.
Há um quê de pitoresco nas obras de Mouramateus, um humor jovial, sustentado tanto no cênico quanto na palavra. As palavras soam fortes na dramaturgia de Mouramateus, ela nos aproxima para depois nos afastar, estabelece um jogo cinematográfico interessante, um mix entre ironia e estranhamento, pois aquele mundo é o nosso não sendo, há um pitada lúdica que se interpõe, que nos faz lembrar da encenação.
Sempre bom reforçar e lembrar de que ideia de duplo já está posto desde o título, embora durante a projeção ela se expanda mantendo uma aura de permanente sedução, nesses gêmeos Orlando e Rômulo (Mauro Soares, também coroteirista com Mouramateus), que se somam pelas diferenças que lhes são inerentes. O que mais seduz em "A vida são dois dias" é mesmo o seu humor constante, debochado perante aos fatos corriqueiros que nos chegam com o toque do inusitado, como o simbólico jogo sobre naufrágios, onde ganha quem perde primeiro ou ainda o insólito enlace entre a música e o acidente, que vai desencadear toda a história e introduzir a performática personagem de Mariah Teixeira.
A coragem de assumir o insólito talvez seja um dos dispositivos mais potentes da curta e chamativa filmografia de Leonardo Mouramateus, que ainda promete entregar preciosidades no futuro.
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