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URUBUS (2023) Dir. Claudio Borrelli




Quando o espetáculo supera o realismo

Texto de Marco Fialho

"Urubus" tinha muitos elementos que poderiam levá-lo longe, mas infelizmente não é isso o que acontece. Apesar da produção ter esmero, uma fotografia muito bem elaborada, com cenas noturnas muito bem acabadas e boas atuações, o filme soa como ultrapassado em sua proposta realista ao refletir sobre o universo de um grupo de pichadores em São Paulo. A produção é do premiado diretor Fernando Meirelles, que tem uma visível influência em algumas sequências, como a da perseguição de um dos pichadores na favela, onde a montagem muito lembrou ao clássico "Cidade de Deus".  

No todo, "Urubus" não deixa de ser um típico filme sobre uma cultura popular realizado por um realizador vindo das camadas médias da sociedade e isso fica visível em vários momentos da obra. O filme orbita em torno de um grupo de pichadores (os urubus) vindos da periferia da cidade e o encontro do líder deles, Trinchas (Gustavo Garcez), inspirado no personagem real de Cripta Djan (um dos roteiristas do filme), com Valéria, uma jovem branca, privilegiada e estudante de arte. Embora fundamentado em fatos reais, o diretor Claudio Borrelli se aventura no ficcional e transita dramaturgicamente entre atores e não atores (estes últimos preparados com a competência habitual por Fatima Toledo).


Entretanto, o que mais me chamou a atenção em "Urubus" foi o arcabouço utilizado na elaboração de um certo realismo que inspira o filme. A câmera na mão (outra característica de Cidade de Deus) foi utilizada para criar uma permanente tensão no seio da trama e especial nas cenas onde os conflitos aparecem com mais ênfase, como os da Bienal de São Paulo. Apesar de todo esse esforço para se sublinhar a vida conturbada e de risco do grupo dos pichadores, há elementos que abalam essa sensação como um abuso na utilização de música operística de Mozart e Puccini para acentuar a dramatização de algumas cenas. Um número elevado de cenas de ação também contribui para enfatizar uma artificialização da mise en scène, que vai abandonando as possibilidades de aprofundamento das temáticas que o filme levanta, assim como um mergulho mais fundo nos próprios personagens. 

"Urubus" consegue em todo o seu percurso alinhavar temas importantes, como a discussão acerca da relação entre picho e arte, mas sem aprofundá-los minimamente, e assim, vai descartando as temáticas para apenas se prender à ideia de uma ação que leva o filme continuamente à frente, como os conflitos irrelevantes com uma gangue rival. Outro aspecto que dificulta o aprofundamento das temáticas é o protagonismo excessivo da personagem Valéria (Bella Camero), bem mais expressivo do que o dos membros do grupo Urubus. Na verdade, pouco conhecemos sobre eles, sobre o seu mundo, suas famílias e seus territórios. O apartamento de Valéria é mais explorado, imageticamente, do que a casa de Trinchas, por exemplo. Ainda do nada, surge uma menina dizendo que está grávida de Trinchas. Não sabemos bem qual a posição dela na vida dele, soa apenas como um elemento que brota para ser mais um conflito entre o casal em formação.


Outra cena que surge do nada é a da curadora da Bienal internacional que convida Valéria e os urubus para participarem do grande evento de arte europeu. O filme sequer questiona o fato de que o picho só passa a ser considerado arte depois do reconhecimento de um país europeu ao trabalho deles. Me lembro então de outras perguntas que o filme poderia ter feito e não fez: qual o significado do picho para a cidade de São Paulo? Qual a relevância para os grupos que o praticam? O filme deixa escapar essas e outras perguntas, não interroga nada, apenas vai enfileirando ações, quase sempre fugazes e pouco efetivas, embora tudo seja filmado com a devida competência técnica e haja um bom acabamento de imagem e som no filme. 

Para mim, onde "Urubus" mais perde é não atrelar de maneira consistente o território à arte dos pichadores, e assim, retirar o potencial político inerente ao picho enquanto manifestação artística e social. Durante o ataque dos urubus à Bienal de São Paulo, a população presente ao evento se posiciona contraditoriamente, uns apoiam os pichadores enquanto outros os condenam, mas não vemos os argumentos de ambos os lados. Falta a "Urubus" uma boa dose de subjetividade, um quê de fabulação dos personagens, não basta se ter diálogos que revelem o modo de falar dos personagens, que queira artificialmente incutir uma sensação de realidade e verdade, já que não sabemos como esses corpos interagem em seus próprios territórios, para além da violência e da marginalidade de suas ações. 


De bom grado, vemos florir exemplos significativos no cinema de hoje a saudar a revelação da subjetividade dos personagens. A produtora mineira Filmes de Plástico bem explora esse viés, assim como o cinema lúdico de Adirley Queirós ao retratar personagens da Ceilândia. Em "Urubus", o que vemos são pessoas igualmente vindas das regiões mais humildes economicamente, sendo retratadas por um diretor que não explora a fundo os personagens, e que filma como se realizasse um videoclipe, e acima de tudo, sequer dá voz e representação a essas pessoas, embora tenhamos os próprios pichadores ali em cena como atores. 

O resultado final de "Urubus" é a espetacularização da vida e do cinema e um retrato dos excluídos que nasce da visão de uma menina vinda das camadas médias da população e que se projeta por um reconhecimento vindo do exterior. Dramaturgicamente, "Urubus" condena seus personagens a vagar pela subalternidade ou à espera que a velha e decadente "civilização" venha salvá-los da indiferença e condenação social. E sob este aspecto, não há Fatima Toledo que faça isso soar como verdadeiro, pois a veracidade no cinema hoje não está mais somente em interpretações condizentes ou em figurinos adequados. Outros atributos se fazem necessários para que a alma desses personagens brilhe na tela. Antes da própria representação, perguntas como "o que é vencer na vida?" e "o que é estar no mundo?" precisam ser respondidas com o coração do cineasta. Há muito que a razão por si só não basta. Os personagens precisam estar vivos em cena, e para isso, a sinceridade precisa habitar a proposta de realismo dos diretores. A maior problemática que habita o cerne de "Urubus" são os seus protagonistas precisarem ser salvos da barbárie pelos inteligentes e "cultos" europeus. Creio que esses personagens mereciam uma maior dignidade.

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