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OS ENCONTROS DE ANNA (1978) Dir. Chantal Akerman


Os deslocamentos de uma mulher deslocada do mundo

Texto de Marco Fialho

"Os encontros de Anna" é mais um trabalho excepcional da cineasta belga Chantal Akerman, um primor de cinema com tempos precisos, uma câmera consciente do processo narrativo, de filme de personagem e de planos perfeitamente azeitados. E a coragem dessa personagem maravilhosa que é Anna? Chantal propõe uma trama profundamente feminista ao mergulhar na alma dessa mulher, que busca em vão nos encontros algum tipo de conexão com o mundo.

Chantal demonstra ter a plena consciência de que mais importante do que narrar a história em si, o ofício da direção de cinema é ser fiel a um princípio estilístico, e em "Os encontros de Anna" encontramos essa coerência. Há de se ter ainda uma inteligência na execução de cada plano, o que aqui tem em abundância. O filme é um tipo de road movie, embora não se encante com essa ideia, nem se deixe levar pelo jargão "o mais importante na viagem é o caminho". Anna é uma cineasta que vive se deslocando de uma cidade para outra ou de um país para outro para apresentar sua obra, embora não há uma cena dela exercendo esse trabalho no filme, o que faz sentido, afinal o cinema não é aqui a matéria-prima. 


O aspecto mais interessante de "Os encontros de Anna" fica a cargo de seus deslocamentos e o significado deles para a personagem (Aurore Clément). É significativo o quanto Chantal sublinha a solidão não só da protagonista, mas também de todos os personagens que vão perfilando na trama. De certa forma, Chantal coloca a sociedade como personagem, o vazio das cidades, o oco existente em cada peito. Uma das posturas mais habituais de Anna é a quantidade de vezes que ela olha por uma janela, seja nos hotéis, motéis, trens ou na própria casa. É como se Anna buscasse sistematicamente algum sinal de vida na janela, ou ainda, tentasse se localizar no mundo. 

Anna é antes de tudo uma mulher deslocada do mundo e o ato de se deslocar insistentemente pelo ofício que exerce apenas é um sinal não a causa da discussão. Chantal mostra o tempo todo como Anna não consegue se conectar a nada ou a pessoas, ela quase sempre é fria ou age no automatismo. Os personagens, assim como as cidades e as estações de trens, vão passando por ela. A impressão que fica é que ela não se sente mais pertencente do mundo. Emocionalmente ela está à deriva. Chantal não é uma cineasta dos closes e aqui em "Os encontros de Anna" reafirma o estilo ao privilegiar planos médios e de conjunto, pois a diretora gosta de trazer os espaços também para o protagonismo em seus filmes, gosta de explorá-los.    


Muitos homens passam pela sua vida, alguns na esperança que ela supra suas carências, mas Anna não parece muito apta a se doar de verdade. No embalo da vida e de suas andanças, conhece um alemão que se apaixona por ela, que tem filhos, cuja mãe foi embora com um turco. Ele lhe apresenta a sua família, sonhando que assim ela ficaria, mas o caminho da rua falou mais alto e ela se foi. Uma amiga de sua mãe, se encontra com ela numa estação de trem e tenta convencê-la a casar com o seu filho. Um homem solitário em um trem esboça uma sedução, mas o romance não emplaca, ela vai para Bruxelas, ele para Paris. Anna encontra com a mãe em Bruxelas, elas vão para um hotel e ela confessa ter se apaixonado por uma mulher, a maior revelação e a mais inesperada do filme. Anna encontra-se com o namorado em Paris, porém nada igualmente dá certo, ele passa mal durante a única noite que teriam juntos. 

"Os encontros de Anna" lentamente expõe as solidões inerente à sociedade contemporânea, são tantos transportes ágeis, como carros e trens, eles nos levam para longas distâncias, mas não preenchem o vazio que essa sociedade exala por todos os seus poros. São poucos os diálogos, pouco se tem a dizer sobre tudo isso. Para Chantal o fundamental é nos confrontar com esse drama, vivê-lo junto à protagonista e embarcar com ela na canoa furada que é a vida. Acordar, comer, dormir e às vezes trepar. Assim o namorado parisiense de Anna define a vida. Como uma sucessão de acontecimentos pré -programados, como se fôssemos autômatos. 


O mais incrível nessa jornada de Anna é quando ela descobre que depois de tantos homens, o amor maior estava numa outra mulher. Mas os caminhos, apesar de óbvios, não são tranquilos. São as surpresas e delícias que Chantal nos revela em plenos anos 1970. E como é bela essa cena lésbica apenas narrada oralmente, sem dúvida, a mais sexy do filme. Chantal coloca o mundo para além das imagens, o expande para o terreno da imaginação. Durante o percurso do filme, a diretora nos conduz pelas mãos, sem pedir licença, nos seduz a acompanhar as deambulações de Anna e isso se dá quase sem querer, ou pelo menos sem que percebamos, assim, quase do nada, estamos presos, assistindo as viagens intermináveis de Anna, essa nova mulher do século XX: independente, pró ativa, mas igualmente prisioneira do automatismo imposto pelo organização masculina. É como a felicidade não fizesse parte do ideal de vida do universo contemporâneo. Chantal registra Anna como mais um corpo a vagar quase como um insone por um mundo pouco inspirador e amigável. Como Chantal é gigante como diretora. 

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