Um expressivo cartão de visita de Chantal para o mundo
Texto de Marco Fialho
"Eu tu ele ela" é o primeiro longa ficcional de Chantal Akerman. É uma obra seminal da diretora, em que alguns dos seus temas mais recorrentes já estavam presentes, como o tédio humano na contemporaneidade, os planos longos, o deambular da protagonista, o protagonismo feminino, o romance LGBTQIA+ e os diálogos minimalistas. A força do cinema de Chantal ecoa na ousadia narrativa e nos temas abordados. Já nesse trabalho inicial nota-se um esboço de um estilo que seria lapidado nas obras subsequentes.
Chama a atenção como Chantal constrói a personagem Julie (interpretada pela própria Chantal Akerman) praticamente sem diálogos. Nas primeiras cenas, ouvimos sua voz interior, as impressões da jovem Julie sobre o tédio da vida. No pequeno espaço do seu apartamento, Julie muda tudo de lugar, na esperança de amainar a falta do que fazer. Come colheres e mais colheres de açúcar, fica pelada, enquanto a câmera de Chantal continua fixa a registrar os movimentos de Julie. O maior estranhamento dessa longa sequência, que dura 30 minutos, vem de uma fotografia em que o branco do corpo dela se irmana com o branco e o cinza do apartamento a predominar na imagem. Inclusive, esse corpo de Julie, é um dos grandes protagonistas nesta história sobre uma personagem que está em busca algo, por mais que ela não saiba exatamente o que se busca.
Na segunda sequência, quando Julie sai de casa e pega uma carona com um caminhoneiro, observa-se o contraste entre o comportamento de Julie e do caminhoneiro. Enquanto este fala sem interrupção, narrando sua vida sexual com a esposa, Julie fica inerte apenas ouvindo. Não há diálogo, um discursa e a outra somente ouve. Ela masturba ele (Chantal não mostra a cena, apenas o rosto dele), janta com ele, mas enquanto eles estão no caminhão, o plano é quase sempre o mesmo, um plano fixo do caminhoneiro dirigindo e falando sem parar. Julie aparece só no canto do vídeo, observando o caminhoneiro. Curiosamente, essa sequência do caminhoneiro, também dura 30 minutos.
A terceira e última sequência, acompanha Julie visitando o seu affair feminino, momento que descobrimos que a sua crise emocional e o seu vazio eram relativos a essa altercação amorosa. Nessa sequência com duração de 22 minutos, os diálogos são praticamente suprimidos, mas ação corre solto. Chantal Akerman filma a transa lésbica por 11 minutos, novamente tendo o branco como mola propulsora da cena. A intensidade dessa cena é digna de menção. Esse encontro delimita algo bem marcante do cinema de Chantal: que a relação entre dois corpos apaixonados prescindem de grandes diálogos. "Eu tu ele ela" é um expressivo cartão de visita de Chantal Akerman para o mundo conhecer o riquíssimo potencial que o seu cinema imprimirá nos anos subsequentes.
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