Pular para o conteúdo principal

SEM URSOS (2022) Dir. Jafar Panahi


Os ursos estão à solta

Texto de Marco Fialho

O novo trabalho de Jafar Panahi (Táxi Teerã, 3 faces, O balão branco, Cortinas fechadas, entre outros filmes importantes) é um tipo de panóptico insidioso. As câmeras de Panahi estão em Teerã e numa pequena cidade na fronteira com a Turquia: mais uma vez o cinema político de Panahi vai de encontro ao sistema opressor do Irã. Em verdade, o diretor institui um paradoxo: o regime o vigia, mas ele também faz o mesmo ao apontar a câmera contra o regime opressor tanto do Estado quanto da sociedade. Panahi sutilmente desconstrói com sua câmera costumes milenares que atravancam o convívio amistoso entre os seus.    

A realidade é que o cineasta continua banido e preso em seu próprio país e reafirma o enfrentamento perante o regime fundamentalista. A impressão permanente que temos é de que a câmera é uma arma na mão de Panahi. Filme a filme, o diretor reitera a sua própria imagem como um artifício de resistência política, há nessa atitude um que de ato simbólico embora também traga ali uma chama de luta e um ato efetivo. Panahi dirige um filme em Teerã mesmo estando em outra cidade, acompanhando ao vivo as filmagens pela internet. 


As tramas ficcionais e documentais vão se misturando de tal modo durante o filme, que perto do final já não sabemos mais quais são esses limites. Mas Panahi não se contenta com as superficialidades, na sua passagem pelo lugarejo interiorano, ele expõe o conservadorismo das comunidades tradicionais, o quanto não só são arcaicas quanto também servem de sustentáculo do regime autoritário central. 

A comunidade vigia os passos do diretor e o comportamento de todos os seus membros. Em uma cena, um vizinho o aconselha a não subir no telhado que pode ser considerada uma atitude suspeita. Quando um menino de 9 anos vê que Panahi bate uma foto de um casal que estavam comprometidos para outros, uma prática opressiva de manutenção do poder e riquezas das famílias tradicionais, o diretor põe o sistema a nu ao registrar a saga para que ele mostrasse a tal foto. Panahi nega ter essa foto comprometedora, mas é obrigado a fazer um humilhante juramento público à comunidade de que não tinha em seu poder a tal foto. O absurdo do autoritarismo é posto à prova e evidenciado pelo cinema ativista de Panahi. 


Os ursos do título são uma metáfora usada por Panahi sobre a mentira no Irã de hoje, mais uma imagem falsa do Estado para controlar pelo medo os iranianos. O Irã de hoje é um país que vive do medo e do fomento à ignorância e do apego a valores tradicionais que mantém os privilégios de poucos. Lá, os ursos, estão literalmente à solta. E o que podemos dizer do cinema de Panahi é que cada imagem realizada é um tiro contra o sistema e isso faz a potência do seu cinema, mesmo que em alguns momentos o ritmo ralente e atrapalhe um pouco a fluência do filme.   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...