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SCARBOROUGH - UM BAIRRO CANADENSE (2021) Dir. Shasha Nakhai e Rich Williamson


O carinho como redenção ao caos social

Texto de Marco Fialho

"Scarborough - um bairro canadense" retrata a vida de três crianças que precisam sobreviver no ambiente hostil dessa periferia de Toronto, Canadá. Não deixa de ser também um filme-denúncia sobre a sociedade canadense e o quanto as políticas de bem-estar não correspondem mais ao que era a uns anos atrás. O Canadá é sempre propagado como exemplar nas políticas sociais e "Scarborough...", de certa maneira vem atualizar a situação dos que mais precisam de atenção e proteção do Estado. O filme é adaptado do bem-sucedido livro homônimo de Catherine Hernandez.  


Uma característica interessante é o quanto os diretores Shasha Nakhai e Rich Williamson pulverizam o protagonismo no decorrer da narrativa. Essa multiplicidade de pontos de vista agrega pontos instigantes, mas também acarreta alguns problemas narrativos, mesmo que as mais de duas horas amenize um pouco a inevitável dispersão causada pela profusão de personagens. Para contornar os muitos personagens que os diretores querem abarcar, o roteiro se esforça por aglomerar mais as vidas deles, daí a centralidade que a professora Hina vai assumindo no desenvolvimento da história. O Centro de Alfabetização de leituras de Ontário se torna então um lugar de encontros, conflitos e até de respiro de alguns personagens. É lá que as três crianças: Laura, Bing e Sylvie trocam experiências enquanto esperam uma vaga definitiva em uma turma regular. Cada uma delas vive seus problemas e adversidades. 

Laura, uma menina tímida e insegura, cuja mãe é drogada e desgarrada socialmente, vai morar com o pai, outro ser complicado, frio, psicologicamente agressivo, que gosta de punk rock e se mostra despreparado para exercer minimamente a paternidade. Laura vive um típico caso de abandono parental. Sylvia é uma menina alegre e comunicativa, com um profundo senso de justiça e coleguismo, mas que a família precisa lidar com uma doença psiquiátrica do pai e o autismo do irmão, e com uma mãe sobrecarregada que cuida de tudo e de todos, sem perder a ternura jamais. E por fim, tem Bink, um menino super-dotado intelectualmente, mas cujo corpo obeso o torna vítima constante de ataque de bullying dos outros alunos. Já a professora Hina, se esforça por manter a sanidade e eficiência junto a sua eclética turma, se revela uma mulher firme, carinhosa, atenciosa aos problemas de cada aluno, mas que é pressionada a dar um tratamento frio e distante por parte dos supervisores da escola, que ainda é questionada por ser ativista política nas redes sociais.


Os diretores Shasha e Rich optam por uma câmera na mão, que revela a instabilidade presente nas relações interpessoais, o que gera um certo incômodo, pois nem todas as cenas são satisfatoriamente visíveis, além de momentos de imagens desfocadas. Um dos direcionamentos dos diretores está na demonstração dos afetos, quando aproxima a câmera dos personagens e tenta estabilizá-la mais, momentos em que a música sobem um pouco o tom para sublinhar as emoções, embora a música em todo o filme esteja sempre bem equilibrada de modo a não acentuar em demasia os sentimentos que já estão postos na interpretação. 

Mas o som também pode ser mais dramático, como na sequência do Natal, em que situações paralelas caminham para um final trágico muito bem filmado, já que não sabemos de cara qual acontecimento trágico ocorreu, e o que vem depois contempla o acontecimento, mas o reafirma com todo o zelo e respeito à personagem atingida. Esse acontecimento também marca um ponto de virada da história, com o irmão autista de Sylvie assumindo o protagonismo das cenas seguintes, para sublinhar mais uma vez o trabalho persistente de Hina para restaurar um mínimo de dignidade e atenção àquela comunidade periférica.      

As interpretações são igualmente em um tom satisfatório. As crianças se equilibram, todas formam um conjunto interessante no tom, sempre mais contidas, focadas no olhar, nos gestos, na expressão corporal do que nas falas. "Scarborough..." pleiteia um realismo potente, daqueles que beiram o documental ao expressar a dura realidade de uma periferia canadense. Problemas de emprego, pecúlio, dívidas, doenças, maus-tratos, exclusão, abandono e questões psiquiátricas estão presentes veementemente na história. O mais profícuo é a participação de algumas mães e da professora Hina que não só amenizam o sofrimento como ofertam carinho para as crianças. Há uma cena particularmente tocante entre Hina e Laura, quando esta última escrever em um esforço hercúleo a palavra abraço e ambas terminam a cena justamente se abraçando. Há uma delicadeza realmente nessas interpretações e imagens. 

São nessas brechas e espaços cênicos que "Scarborough..." cresce, para a contemplação dos espectadores, deixando cativado um lastro de esperança e empatia. Se a tragédia persegue uns, a redenção está destinada a outros, como os encontros de Bing e Sylvie com o talento artístico. Shasha e Rich sabem a relevância da solidariedade e das artes para o sorriso do mundo, nem que a duração de tempo dessas manifestações seja breve e passageira. É o ser humano ocupando o lugar que o Estado não penetra e atende, o que mostra o quanto somente nós podemos ser uma flor a nascer em uma calçada de concreto. 

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