A ilusão do paraíso, da beleza e da riqueza
Texto de Marco Fialho
Brandon Cronenberg, filho do mitológico cineasta David Cronenberg, é um nome para se guardar. Ao que tudo indica, ele herdou o talento do pai para histórias bizarras e bem narradas. "Infinity pool" é um filme de horror que desde o início, até quando tudo parecia ser uma mera história de amor, algo de subliminar já apontava um quê de tensão pairava no ar.
O filme trabalha com muitos simbolismos e não fecha todas as portas que abre, deixando sempre um mistério a ser desvendado e isso é um elemento instigante para quem está assistindo. Brandon consegue entrelaçar temas como a da identidade, da manipulação da ciência e da diferença de classes com maestria, além de extrair interpretações seguras dos atores, com destaque para a talentosa atriz brasileira Mia Goth, uma nova estrela da indústria de Hollywood.
Na trama, em La Tolqa, um país imaginário, um casal jovem James e Em Foster, ele um escritor fracassado em busca de inspiração e ela rica de nascença, se hospeda em um resort e conhecem o estranho casal Gabi (Mia Goth) e Alban que lança o primeiro casal numa aventura sinistra, depois que James (Alexander Skarsgard) atropela casualmente um inocente. Na leis de La Tolqa um acusado pode evitar a morte por execução aceitando que o Estado faça um clone dele, mas todo esse privilégio vai depender do quanto se tem de grana para comprar esse direito. James é um pé rapado, mas Em não, é filha de um rico editor. A partir de então o filme engata no enredo que mistura ficção científica e horror, com direito à clonagem humana, sadismo e tudo o mais, tendo sempre a personagem de Gabi como central na condução da história. Ela é a própria representação da ideia de resort, ela seduz pela sensualidade, pelo arrivismo, pela ousadia e pela perversão. Ela simboliza o sonho inatingível, algo no plano do ideal, um fetiche, ela está perto mas toca-la e tê-la não é propriamente possível, apenas se tem a sensação de que isso possa acontecer.
"Infinity pool" caminha por territórios difíceis e provoca uma confusão no espectador: será que estamos acompanhando um clone ou os personagens originais? Os próprios personagens levantam essa lebre. O que instaura uma grande abertura de leituras na história, pois todos podem ser qualquer coisa. Tudo rapidamente vira uma aventura arrivista, em que ricos controlam tudo pelo poder econômico. O diretor Brandon Cronenberg sugere o quanto nos permitimos perder o controle sobre a nossa identidade, como se houvesse vários de nós caminhando por aí e ainda deixa subentendido o quanto temos que renascer em diversas etapas da vida e para cada uma podemos escolher máscaras diferentes.
As máscaras tradicionais horrendas e deformadas utilizadas pela população de Li Tolqa servem de simbolismo para tudo o que vemos nesse macabro mundo desenhado em "Infinity pool". A deformação é o elemento mais significativo, ela está na origem de tudo (inclusive ela está logo na primeira sequência) de mais canhestro que vemos na tela, ela revela o interior daqueles personagens medíocres que dominam tudo pelo poder do dinheiro. Todos os personagens ricos pintam e bordam no resort, o que mostra o quanto a grana distingue a relação entre as pessoas. Observem que por conta dela, nada é saudável nesse filme, nem a relação de James com a esposa, nem com os turistas do resort. Brandon Cronenberg também trabalha James como um personagem fora da caixinha da riqueza, pois desde cedo fica evidente que sua origem é pobre, o que faz ele ser ridicularizado pelos ricos, que deixam claro que ele jamais será um deles.
Visualmente, "Infinity pool" tem muitos aspectos dignos de serem pontuados. A câmera logo no início, capturando ângulos inusitados e inclinados é bem significativa, deixa evidente o quanto a imagem enviezada induz uma mensagem sobre aquele resort aparentemente perfeito e paradisíaco. Ainda no plano das imagens, o filme tem passagens belíssimas psicodélicas, coloridas, oníricas e alucinantes, explora uma sensorialidade bem interessante, desafia a própria sanidade do espectador, o atordoa e atrapalha o seu melhor discernimento, altera o seu estado de compreensão, causando inclusive uma perturbação. Essa intensidade é agravada por um sentimento de claustrofobia que perpassa o filme, na medida em que tudo indica que James é um eterno prisioneiro daquela bizarra situação.
Há um quê de Kafka na semente desse roteiro, pois temos a impressão de que James caminha por labirintos e armadilhas, algumas suscitadas pelo seu estado mental altamente conflituado. Há ainda um lampejo de "Nós" (2019), filme de Jordan Peele, em que o enfoque passa igualmente pela questão da identidade, embora em "Nós", o viés identitário ligado ao racismo falava mais alto do que o psicológico. Sem esquecer aqui o quanto Brandon Cronenberg, de muitas maneiras, segue o expressivo e complexo trabalho de seu pai, David. Sedução e perversão andam juntas em "Infinity pool". James é um prisioneiro daquelas pessoas ricas do resort, mas também é prisioneiro de si mesmo, de suas ambições e fracassos. Ele apanha, agride a um clone seu, depois é forçado a brigar com um clone-cachorro seu, uma situação inusitada, ele ainda guarda urnas funerárias de várias versões de si mesmo.
Algumas cenas em "Infinity pool" tem um teor de violência explícita e impactante, como a do Estado executando a pena no suposto clone de James com várias facadas filmadas dadas por uma criança, em close, vingando a morte do pai. Que sociedade é essa que naturaliza esse tipo de violência? Há uma crítica no roteiro de Brandon profunda acerca da nossa identidade no mundo contemporâneo, o questionamento de que essa sociedade os papéis são fluidos e as personalidades tornam-se descartáveis e a cada momento se cobra de nós humanos uma faceta diferente. O processo de adequação social passa pelas inúmeras máscaras que precisamos vestir para poder sobreviver em um mundo gerido pelos mandamentos do dinheiro e Brandon se utiliza fartamente dessas premissas para sedimentar o seu trabalho. O diretor coloca o corpo coisificado, fragilizado pelo poder da imagem e da venda desse corpo para se preservar algo que nada vale quando se torna vendável. Brandon é cruel, impassível profundamente expositivo. Aqui se paga e se revela ao mesmo tempo.
O dinheiro é um elemento objetivo, carnal, corporal, ele vem e resolve, submete pessoas e dita comportamentos. "Infinity pool" brinca com essa ilusão imagética na qual os resorts seduzem os clientes com a falsa sensação de que o mar é extensão da piscina. Tudo é um paraíso único, só que não e as grades do resort comunica isso. Mas o mais interessante é ver que as grades, na verdade, protegem mais que está fora dela de que o contrário. Brandon Cronenberg é tão consciente da clareza dessa ideia que ele a imprimiu tanto no título como metáfora quanto na própria trama rocambolesca e fantástica. E a personagem de Gabi, embalada com maestria pela extraordinária Mia Goth, é a que melhor traduz essa imagem de falsidade e ilusão de paraíso, beleza e dinheiro que "Infinity pool" carrega e nos joga na cara com muita naturalidade e contundência.
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