Pular para o conteúdo principal

FOGARÉU (2022) Dir. Flávia Neves


O fogo da alma é o mais potente

Texto de Marco Fialho

"Fogaréu" é um filme que se insere em um grupo de obras do nosso cinema atual que refletem criticamente contra o patriarcalismo, o coronelismo e as estruturas políticas e sociais retrógradas advindas do período colonial brasileiro. "Fogaréu", palavra que expressa uma manifestação tradicional da Cidade de Goiás, vem bem a calhar por sublinhar costumes antigos que perduram há séculos naquela realidade.    

A ótima atriz Barbara Colen interpreta Fernanda, uma jovem que volta a cidade de Goiás para descobrir a verdade sobre a identidade da sua mãe. Seu tio (Eucir de Souza) é o prefeito da cidade e um defensor dos interesses do agronegócio e um inimigo feroz dos povos indígenas. A presença dessa personagem criará um embate permanente cujas consequências são bastante conhecidas na sociedade brasileira como o machismo, o estupro e outras práticas agressivas ao corpo e a moral dessa personagem.  


"Fogaréu", dirigido pela cineasta Flávia Neves, privilegia o viés feminino de uma história bizarra em que primos engravidavam primas e não assumiam os filhos deformados, os colocando desde à infância como agregados para explorar a sua força de trabalho. No mundo das aparências a família se mostra como ideal e harmoniosa, enquanto pelos porões pessoas são mantidas como escravas. "Fogaréu" mostra que a fotografia das paredes não revelam a verdadeira imagem da família.   

Desde o início do filme nota-se uma franca dicotomia entre família conservadora e as atitudes transgressoras de Fernanda. São uma série de detalhes, traduzidos por roupas, ideias, olhares que vão cena a cena se avolumando, aumentando a tensão até entrar em ebulição. Mas onde o filme mais derrapa é do ponto de vista da linguagem cinematográfica. A maioria dos planos são convencionais e muitas vezes se aproxima do folhetim. "Fogaréu" não é um filme que impõe desafios aos público, sua comunicação quase sempre é simples e direta. 


Algumas temáticas que o filme levanta ficam pouco aprofundadas, pois são postas tão periféricas na trama que até esquecemos, como a questão da terra indígena que poderia ser mais trabalhada, basta lembrar que a indígena raramente aparece e quando surge mais decididamente é para ajudar Fernanda numa cena onde ela estava sendo violentada pelo capanga do tio. Os personagens dos primos também são quase episódicos no todo e poderiam ser melhores explorados pelo roteiro. Mas o filme também reserva cenas muito bonitas, como a de Fernanda lançando os restos mortais da mãe no rio e a da descoberta da colcha que conta a história da família. A fotografia de "Fogaréu" é quase o tempo todo correta e previsível, talvez a melhor cena fotograficamente falando seja a que ela confronta o pai na sala, onde a luz comunica o tanto de sombra que esse assunto representa para a família. 

"Fogaréu", apesar da apresentar algumas irregularidades, merece ser visto pelas temáticas que oferece e também pela bela interpretação de Barbara Colen e de Eucir de Souza, que fazem uma boa tabelinha antagônica. Ao final, o filme sublinha a mensagem de que lutar por um país melhor não é fácil, já que são muitas as batalhas a serem travadas contra uma tradição conservadora e ambiciosa, cega e ávida por manter privilégios e poder político. Mas é preciso ir atrás dessa justiça porque ela não cairá do céu nem será dada de mão beijada. É preciso queimar as estruturas carcomidas e como bem demonstra Fernanda, o fogo da alma precisa ser o mais potente.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...