Reestruturando e resignificando a história do cinema
Texto de Marco Fialho
Assisti pela primeira vez ao documentário "Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo", no Festival do Rio de 2019. À época eu estava com muitas atribuições e mergulhado vendo cinco filmes por dia no festival, enfim, não me sobrou tempo para fazer uma escrita sobre esta valorosa obra. Mas creio que esta falta ficou ali, vez por outra me fustigando, como um erro irreparável, tão grave quanto o tempo que esse documentário fantástico demorou para ser realizado e dar um novo direcionamento para essa história de apagamento (mais uma dentre diversas que existiram e ainda existem). Felizmente, a plataforma digital do Sesc SP, uma das mais importantes hoje do país, resgata esse filme e o oferece à sociedade gratuitamente.
O que o filme de Pamela B. Green faz é mais do que reescrever a história, é reintegrar a ela uma personagem que lhe foi extirpada à fórceps e a realiza de maneira impecável, repleta de pesquisa, de arquivos omitidos e escondidos, um garimpo raríssimo de se ver. Chama muito atenção o quanto a diretora faz questão de incorporar à narrativa a trajetória difícil de busca dos arquivos e filmes que estavam perdidos. É mais lindo ainda as cenas em que mostra a luta da própria Alice Guy-Blaché para reinstaurar o seu papel no cinema. Um dos momentos mais incríveis que o filme de Pamela resgata é uma entrevista de Alice em 1964, em que demonstra uma lucidez, uma personalidade, uma desenvoltura e uma inteligência fora do comum.
Outra característica destacável é o quanto Pamela também segue os passos do apagamento de Alice Guy. Não basta só mostrar tudo o que ela fez como diretora fantástica e sensível que era, precisa-se também falar dos caminhos que nortearam o apagamento e nesse quesito o fundador dos Estúdios Gaumont torna-se o pivô da história. Parece que ele não perdoou o fato de Alice ter ido com o marido trabalhar nos Estados Unidos. Assim, de todas as publicações da Gaumont, o nome de Alice Guy foi retirado, apesar da pressão feita por ela, tanto que Gaumont promete fazê-lo em uma nova publicação, fato que não ocorreria até a sua morte. Mas não só as ausências merecem ser mencionadas, também é digno de menção a usurpação sofrida pela diretora, que encontrava nome de outros diretores na função que foi inteiramente realizada por ela. Todos os filmes feitos no terraço da Gaumont foram dirigidos por Alice, ela diz isso nas entrevistas.
A luta de Alice Guy para ser reconhecida como a primeira diretora de cinema é justa, pois em 1896, menos de um ano depois da primeira exibição dos Irmãos Lumière em 1895, já existe registro de filme dela, "A fada do repolho". Essa é uma informação confirmada pela própria Alice. Pamela B. Green constrói o documentário sustentada por um arquivo de imagens potentes, porque ela consegue reunir materiais tidos como perdidos e mostra o quanto é difícil recolocar a história em devido lugar.
Pamela registra logo no início do filme o total desconhecimento tanto do público geral quanto do especializado em relação a Alice Guy, o que reafirma a importância de trazer à baila esse tema, estranhamente contraditório quando se pensa que Alice Guy produziu mais filmes do que Méliès, Os Irmãos Lumière e Thomas Edison.
Um outro resgate que o filme de Pamela faz é o da valorização dos filmes em si. Realmente, as imagens que vemos de autoria de Alice, possuem semelhança com os diretores da época, como os planos com a câmera fixa, mas por outro lado, pode-se observar histórias mais originais, como o filme "Os resultados do feminismo" em que ela propõe inverter os papéis de gênero e "O piano irresistível", em que o instrumento magicamente transforma todos em dançarino, até o guarda na rua. Alice institui um método que ela chama de natural, com a intenção de deixar os corpos mais livres e sem amarras dramáticas tão comum no teatro da época. Pamela também frisa o papel de Alice no começo da indústria francesa, em especial o seu trabalho na Gaumont, como responsável pela direção de diversos filmes.
O único senão do filme de Pamela B. Green é a velocidade na qual as imagens vão se encadeando, o que dificulta a plena assimilação de algumas informações. Uma desaceleração das imagens faria muito bem ao filme e traria um respiro interessante, já que o objetivo do documentário é redimensionar a história do cinema e tudo o que é dito e mostrado é de grande relevância.
Mas a importância do documentário é inquestionável e sua amplitude também. Para além de reconstruir a história do cinema, Pamela não esquece de situar o papel da mulher no final do século XIX, para mostrar o quanto a participação de Alice como criadora cinematográfica trazia uma atribuição incomum para as mulheres no mundo do trabalho e do lar. "Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo" vem reafirmar a inserção de mulheres numa indústria que aos poucos foi sendo ocupada majoritariamente pelos homens, que decidiram arbitrariamente alijar as mulheres das funções criativas. Desse ponto de vista é um filme fundador e que colabora para ampliar e resignificar a história do cinema.
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