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RRR (Revolta, Rebeldia e Revolução) 2022 Dir. S.S. Rajamouli



O impressionante RRR 

Texto de Marco Fialho

Muito bom eu poder escrever sobre "RRR" logo depois de "Pantera Negra: Wakanda para sempre", pois mostra o quanto minhas críticas à essa mega produção de Hollywood não se deu só pela magnitude de recursos financeiros ou por preconceito à narrativa, mas sim pelas escolhas cinematográficas e ideológicas desse filme. "RRR" é igualmente uma mega produção cinematográfica, não resta dúvida, com custo superior a 300 milhões de reais, a maior da história do cinema indiano (um terço a menos do que "Pantera Negra: Wakanda para sempre). O filme tem duas sub-histórias: na primeira, uma menina é sequestrada por uma riquíssima e poderosa família inglesa, por puro capricho e crueldade e o tio Bheem (N. T. Rama Rao Jr.) não mede esforços para reintegrá-la à família. Na segunda, que só descobrimos mais tarde, narra a história de um menino Raju (Ram Charan) que promete ao pai morto pelos ingleses numa guerra desigual, que armará toda a população para derrubar o sistema colonial inglês. Essas duas histórias se encontraram mais à frente para caminharem juntas até o fim. 

Logo nos primeiros minutos de filme percebe-se o quanto de efeitos especiais de várias montas invadem a obra. Porém, o excesso de efeitos funcionam ali brilhantemente, bem diferente do caso de "Pantera Negra: Wakanda para sempre". Isso ocorre especialmente porque cada cena do filme foi tratada com um esmero fora do comum. O roteiro, realizado pelo próprio diretor, explora todos os detalhes da história, é impecável dentro da proposta de realizar um filme com uma narrativa clássica, mas que consegue dentro de uma temática crucial para a Índia, desenvolver uma trama que une uma intriga pessoal e épica ao mesmo tempo. O tema da cruel e violenta colonização inglesa está em paralelo desde o início até o final. É muito interessante como esses cinemas periféricos, caso da Índia e Coreia do Sul, conseguiram implementar uma indústria cinematográfica forte (por terem políticas de reserva de mercado, claro), mas jamais sem se voltaram contra a narrativa hollywoodiana, ao invés disso, se apoiaram nela para desenvolver o seu cinema, a adaptando a algumas características culturais desses países. 


Apesar que vejo em "RRR" muito de um certo cinema coreano, como "Old Boy" (Park Chan-Wook), em especial no uso de enquadramentos em close para demarcar narrativamente a história, assim como a câmera em objetos e pelos efeitos especiais explosivos, mirabolantes e exagerados. Há ainda uma influência tecnológica do cinema chinês ao enfatizar grandes saltos humanos por meio de fios agarrados às costas (efeito utilizado em "O Tigre e o Dragão" (2001) de Ang Lee, além de "O Herói" (2002) e "O Clã das Adagas Voadoras" (2004), ambos de Zhang Yimou). Por todas essas influências, não vejo em "RRR" nada de novo, pois ele agrega todos esses conceitos narrativos e imagéticos à própria dinâmica do cinema de Tollywood (e também de Bollywood), com suas pitadas cômicas, musicais e de romance (sobretudo o de Bheem e Jennifer - Olivia Morris). 

Mas qual é então o segredo desse "RRR" para conseguir nos prender por 3 horas, sem nunca cansar? Para mim está na engenhosidade de seu roteiro e numa decupagem muito bem urdida e realizada pelo diretor S.S. Rajamouli, conseguir uma execução perfeita e controlado de um arsenal de elementos cênicos e de efeitos visuais. Mas há também habilidade de grande diretor como construtor de cenas e os exemplos são diversos e fartos. Na segunda sequência do filme, a que mostra uma revolta popular contra os ingleses, nota-se a belíssima cena do personagem Raju enfrentando sozinho a ira da multidão. Assim, de maneira nada delicada ou sutil, o diretor explicita o que é a obstinação desse personagem. A cena aos poucos vai se tornando perversamente hilária, com um final inacreditável e absurdo.  


Algumas imagens são bem recorrentes, como a dos braços dos dois protagonistas (Raju e Bheem) que se unem em vários momentos da história. Como acontece nos filmes de heróis, há encontros e desencontros e eles abundam também em "RRR", além dos imensos sacrifícios que Raju precisará fazer para manter viva a promessa feita ao seu pai. Boa parte da emoção da obra passa por essa tensão entre os protagonistas, no desejo do público pela reconciliação para que haja a redenção de um povo. É visível ainda na concepção de algumas sequências de uma influência de uma estética publicitária, com cenas em câmera lenta a enfatizar ideias e embelezar a imagem, como uma em que Raju anda velozmente com seu cavalo enquanto Bheem está montado em sua moto por uma estrada vazia e bonita ao som de uma música indiana contemporânea. Rajamouli consegue sempre encaixar tudo isso dentro de uma ideia, o resultado nuca resulta vazio e isso faz de "RRR" um grande filme. O filme se impõe um determinado ritmo, que passa por uma ideia de movimentos tanto dos corpos quanto das coisas, há uma cadência poética na execução dessa proposta. Curioso como o diretor consegue até nos momentos de antagonismo entre os dois protagonistas, nos manter na torcida pelos dois, assim, a unidade do filme é mantida, já que independente do que ocorra em tela, nós estamos sempre juntos aos dois e isso é impressionante do ponto de vista narrativo.    

Incrível como o roteiro enfatiza a todo o instante a arrogância inglesa, o quanto discriminatória são as práticas colonizadoras em relação aos indianos. Para eles não há casta, todos são inferiores, o desrespeito é imenso e desproporcional. Interessante poder observar essa questão social pelo viés dos indianos, com certeza é uma minúcia a ser assinalada. Reparem como no romance entre Jennifer e Bheem há um problema de comunicação (que não se restringe a ela , afinal estamos falando de um romance entre um colonizador e um colonizado), o que mostra o quanto difícil é se estabelecer uma relação entre duas pessoas, mesmo quando há, o que é o caso aqui, uma mediação do coração. A montagem frenética de "RRR" pode esconder alguns detalhes dessa maneira opressiva no tratamento, até os pormenores dele, pois "RRR" se afirma pelo movimento e vai se deslocando para muitos lugares. Inúmeros são os cenários desse filme, o que vai bem em um caminho recente da indústria de criar obras com o mínimo de espaço para poupar no orçamento.        


Queria até comentar aqui algumas cenas, mas teria que dar muitos spoilers. Fica para um outro momento. O importante é deixar registrado o quanto "RRR", mesmo não sendo nada inovador, consegue manter com absoluta competência e dedicação a proposta de narrar uma história historicamente fundamental para os indianos, narrada pelo viés dos colonizados, por meio de um controle total dos meios cinematográficos. Uma obra que consegue congregar potência, exuberância e diversão no mesmo pacote. Uma raridade. Torço para que a indústria hollywoodiana observe e tire lições sobre como fazer um filme realmente comprometido com a história de seu país. 

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