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MEU NOME É CHIHIRO (2023) Dir. Rikiya Imaizumi


Nosso nome é Chihiro 

Texto de Marco Fialho

Todos que acompanham meus textos aqui no Cinefialho sabe o quanto é difícil ver filmes com o selo de produção Netflix me agradarem. Mas hoje preciso abrir uma exceção: "Meu nome é Chihiro", filme japonês intimista que se passa em uma pequena cidade litorânea. Somente os japoneses conseguem realizar obras como esta, marcadamente sutis, extremamente sensíveis e que batem lá no fundo da gente pelo enorme senso de humanidade que conseguem atingir. O filme é baseado numa série de mangá escrito por Hiroyuki Yasuda.

A personagem da jovem Aya, que prefere ser chamada de Chihiro (Kasumi Arimura), é fascinante, ela encanta desde a primeira a cena e nossa simpatia por ela só faz crescer, tamanha beleza que ela emana. "Meu nome é Chihiro" trata diretamente de relações humanas, a jovem Chihiro possui um dom para amizades e muito do que ela aprendeu veio do ofício de acompanhante que ela exerceu durante um tempo. O filme vai nos enfileirando personagens, todos sempre mediados pela amizade de Chihiro. O mais intrigante é que apesar da grande quantidade de personagens que vai aparecendo e se incorporando à história, o jovem diretor Rikiya Imaizumi conduz tudo com tanta paciência e sem correria que vamos nos familiarizando com todos e nos apegando a eles com rapidez. 


Há na direção de Rikiya Imaizumi um visível requinte na escolha dos planos e dos enquadramentos, de tudo emana uma energia prazerosa, cada vez mais rara de encontrar nos cinemas mundo afora, em Hollywood nem se fala. A ternura da direção se espraia por Chihiro, mas não só, o carinho pelo humano e por contar a história é de uma sensibilidade tocante. Tem momentos magníficos de fotografia e de roteiro inesperado e expansivo, que vai ampliando sempre a história, porém sem jamais perder a noção de que Chihiro está ali para ser a personagem que aglutina e faz tudo girar em torno dela. 

É bacana como Chihiro não luta contra o seu passado como prostituta, ela não esconde esse fato e até usa essa experiência para melhor trabalhar na pequena e familiar loja de bentô (que nada mais é do que uma maneira de se apresentar uma refeição no prato). Como é comum a gente ver nos filmes japoneses a cultura alimentar se entrelaçar ao enredo e de uma maneira orgânica, e o interessante é que tudo é tão diferente do ocidente, desde o preparo até a forma de comer, fora o prazer que esse povo tem para degustar os pratos. Imaizumi sabe valorizar em cada cena essa característica da culinária. Inclusive, é incrível a cena em que o dono da loja de bentô conta como contratou Chihiro para trabalhar, lhe dando uma bandeja de bentô para provar. Ele fica escondido e observa o prazer dela devorando a saborosa refeição. A cena é belamente singela e muito diz sobre o valor que os japoneses dão ao ato de comer.


Mas um dos pontos mais sedutores de "Meu nome é Chihiro" são os personagens cativantes que vamos nos defrontando no decorrer do filme. Tem Basil, a amiga prostituta; tem a estudante Okaji, uma jovem sufocada pelos pais; o temperamental e carente menino Makoto; os donos da loja de bentô, em especial a Dona Tae, que fica subitamente cega e Chihiro se aproxima muito dela; o ex-cliente de prostituição que afirma que todos viemos de outros planetas, mas não os mesmos; o mestre que mora na rua; Betchin, a estudante que raramente vai à escola e controla a biblioteca de mangá do mestre; o ex-chefe de Chihiro, Utsumi, que agora tem uma loja de criação de peixes. São todos personagens repletos de vida e histórias.  

É impressionante como os japoneses parecem ter um dom para falar de temas pesados com uma sutileza tal que desperta até uma pontinha de inveja em nós ocidentais, mas que fique claro que no fundo esse sentimento traduz a total admiração a esse aspecto de alma que eles trazem intrinsecamente com tanto brilho e beleza. A personalidade de Chihiro nos faz pensar, e muito, sobre a relação dela com a solidão, com o amor e o sexo. Talvez Chihiro, por medo de se machucar, tenha substituído a ideia de amor por uma só pessoa por uma mais coletiva, embora isso não retire dela seu desejo sexual, tanto que na cena do ponto de ônibus ela flerta descaradamente com o rapaz do restaurante, e ela o escolhe como parceiro de cama pelo o que ele revelara de seu caráter, ao enfrentar um homem desrespeitoso minutos antes no restaurante. Para mim, essa é uma das cenas mais marcantes e representativas sobre como Chihiro vê o amor e o sexo. Por isso eu prefira dizer que ela ao invés de trazer um vazio de alma, carregue uma maneira diferente dos demais de trabalhar a solidão, preferindo amar integralmente as pessoas e abrindo mão de uma dedicação a um relacionamento amoroso. É bom lembrar o quanto os homens, culturalmente, oprimiram as mulheres japonesas e o quanto a postura de Chihiro por isso é amorosamente transgressora e o diretor soube muito bem explorar a experiência dela na prostituição para melhor lidar com essas questões tão caras à cultura japonesa, em especial em relação às mulheres, o amor e o sexo. Acho o filme muito feliz nessa abordagem.

"Meu nome é Chihiro" nos toca pelo que tem de contemplativo e melancólico, que são características bem notórias da protagonista Chihiro. Percebe-se nela uma retidão e uma firmeza de caráter de quem sabe o que quer. Mas o que vai se revelando cena a cena é a enorme solidão de Chihiro, e a relação dela com a Dona Tae aos poucos descortina os seus sentimentos mais profundos. O momento em que elas estão no carro é uma das mais emocionantes do filme. Elas falam sobre a vida, a chuva, a maternidade e trocam um longo abraço. A interpretação dessas atrizes é algo de comovente, elas demonstram para mim o quanto entenderam o espírito do filme e flutuam cena a cena. 

Sem sombra de dúvidas, são personagens inspiradoras, leves e melancólicas. Me lembrou daquele samba de Vinícius de Moraes em que ele diz que para fazer um samba é preciso um tanto de tristeza, senão não se faz um samba. Ao final, levamos esse filme conosco, a solidão dele (que pertence a todos nós), as amizades e a certeza de que somos do mesmo planeta de Chihiro.       

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