A resistência mora longe
Texto de Marco Fialho
Desde "Elena" (2012), de Petra Costa, que virou uma febre incontida se fazer filmes a partir de sua própria família. Mais de 10 anos depois nos chega "Me Busco Longe", de Diego Lublinsky. Tal como em "Elena", esse documentário também possui a narrativa em off de alguém (o próprio diretor Diego Lublinsky) tentando entender o mundo a partir dos seus, aqui no caso, o objeto de estudo é Graziele, a cunhada do diretor, lésbica que vai morar na Argentina com medo do que possa ocorrer com ela depois da eleição do governo conservador e homofóbico de Bolsonaro.
As idas e vindas entre Brasil e Argentina dessa jovem são documentadas pelo diretor, numa abordagem ora muito muito próxima ora muito distante, ainda mais quando chega a pandemia do Coronavírus em 2020. O filme é interessante por mostrar e tratar muito fisicamente a nossa relação em um país dominado pela perseguição ideológica e comportamental. De alguma forma, todos nós fomos Graziele, todos nos sentimos estrangeiros em nosso país e a pandemia apenas veio reafirmar o imenso incômodo que foi viver no Brasil dominado por um governo neofascista. A jovem Graziele escolheu o aeroporto, mas a maioria de nós precisou ficar exilado no próprio país, isolado em casa, com medo do vírus e do governo que parecia querer propagá-lo ao invés de combatê-lo. Não foi fácil ser jovem nos últimos 4 anos no Brasil, mas pergunto: foi fácil ser alguém, independente da idade?
Mas Diego consegue falar além, registrar e sentir o quanto está documentando mais do que uma vida, uma vida que está inserida em formas de viver a cultura e a sociedade. Todos nós estamos sempre nesse conflito entre o que queremos ser e o que podemos ser, o quanto somos limitados socialmente e o quanto esgarçamos as cordas do que é estabelecido tanto pelo convívio familiar quanto pelo social. E ainda entre o que planejamos fazer e como a vida realmente acontece, alheio as nossas forças (a separação da namorada está inserida aí). "Me busco longe" se constrói conscientemente nesse espaço, literalmente nas fronteiras, porque o filme é sobre Graziele, mas também sobre Diego, que tenta caminhar depois da perda de seu irmão, que tem a mulher e uma filha pequena para lhe dar forças. O filme ainda documenta a relação das irmãs, seus conflitos, afetos tumultuados, diálogos enviesados e de aproximação.
"Me busco longe" ainda captura o conservadorismo enraizado na cultura brasileira, a não aceitação camuflada da família acerca da orientação sexual de Graziele, flagrada em detalhes, olhares e depoimentos individuais como a da avó, da irmã que ficou em casa e até do pai, pela ausência mais do que anunciada. Lá no início, tem uma imagem que creio sintetizar muito "Me busco longe": a de um bolo metade confeitado com o verde-amarelo brasileiro e a outra metade com as cores azul e branco argentino. Mais do que a divisão entre países, essa imagem mostra o quanto dividido estava o país, o quanto esse país nos dividiu com a intolerância da religião pentecostal e fascista de um governo que se alimentou com a histórica desigualdade social, que investiu desde a campanha na divisão e na perseguição do diferente para poder governar. Felizmente Graziele foi uma das resistentes e sobreviventes desse inferno que aqui infelizmente se instalou e como é bom poder ter o registro disso tudo vindo de um olhar estrangeiro.
Como é bom ter gente pensando os filmes com o cérebro e o coração ao mesmo tempo.
ResponderExcluirQue bacana pensar o texto sob esse viés. Obrigado querido!
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