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MAYA (2023) Peça-filme Dir. Cavi Borges e Patrícia Niedermeier


O duplo e o ritual Maya/Patrícia

Texto de Marco Fialho

Se você nunca viu Patrícia Niedermeier em ação em um palco, não sabe o que está perdendo. Agora, se já viu, sabe do que eu estou a falar, então corre para ver "Maya" no saguão do Estação Net Rio. Patrícia é uma artista brilhante, sua inteireza é contagiante, inebriante para quem participa como espectador do seu estar no palco. "Maya" é antes de tudo um ritual, mas um ritual dominado pelo hibridismo de duas personagens maravilhosas, Maya Deren e Patrícia Niedermeier. É como se Patrícia tivesse encontrado sua alma gêmea no palco das representações e da arte. Não por acaso, o meu amigo e crítico Carlos Alberto Mattos, sabiamente a denominou de Patrícia Niedermaya, tamanha a entrega e cumplicidade que domina a cena do saguão do cinema. 

E o local não poderia ser o mais adequado, um cinema, mas não a sala em si, mas um espaço a serviço dele, onde encontros e desencontros acontecem todos os dias. Fora da sala também representa bem o local onde o cinema de Maya mais esteve na sua breve carreira. Tudo começa com Maya carregando trôpega um barco de iemanjá, muito apropriado para uma diretora que travou um contato estreito e espiritual com o mar. Ela que foi aceita pelo voodoo (inclusive escreveu um livro sobre) e embarcou nos mistérios dos mares do Haiti, que hoje poderiam ser também os mares de Maya. Assim Patrícia pede, de uma só vez, licença às divindades e a própria Maya para começar sua jornada nas profundezas de uma mulher invisibilizada pelo masculino mundo do cinema, dos que controlavam o dinheiro e a sua destinação para os projetos.              

Em "Maya" há um duplo que estão a pairar dramaturgicamente. Em alguns momentos Maya está ali no palco a se movimentar com vigor, as vezes em um transe, em outras é Patrícia, o discurso oscila entre a primeira e a terceira pessoa e ficamos a tatear quando é uma ou outra, ou ainda seria um híbrido pois às vezes vemos as duas ali, duas mulheres amantes da arte, do processo artístico a se buscar, a se tocar. Como "Maya é carnal, presença e intensidade, amo os momentos verborrágicos e ferinos da peça, de uma fala muitas vezes musical saindo da boca de Patrícia, como um inesperado tatibitate russo, proveniente de um temperamento estranhamente eslavo de quem queria fazer poesia com as palavras mas acabou por fazê-la pelas imagens e pela maneira desconcertante como editou os filmes. Aliás desconcertante é uma boa palavra para Maya e Patrícia. Ambas trazem a poesia consigo, uma nas imagens produzidas e a outra no movimento do corpo. 


Outro encantamento que vejo em "Maya" está nas palavras. Nenhuma é aleatória, a peça-filme pode ser tão curta como um filme de Maya Deren, mas cada palavra carrega uma força indescritível, elas são potentes, diretas, comunicam a essência, são substrato, húmus para alimentar uma ideia de arte. Traduzem o rigor existente na obra de Maya, as persistências, um algo de duradouro e constante. Escadas, gatos, espelhos, ritual, xadrez, transe, mar, tambores, poesia, sombras, luz, flores, geometria, corpo, vertigem, pés, tempo, espaço, rosto, Haiti, voodoo, cineasta, fogo, transcendência, barco, mapas, cartas de navegação, faca, verdade, experiência, experimental, cinema, movimento, filme, câmera, livre, alma, ondas, transgressora, rigor, portas, caminhar, chaves, sentido, planos, eslavo. Comecei, desta forma, um incipiente dicionário de Maya Deren. Ele é inconcluso e aberto a novas palavras, que podem aqui ser inseridas, afinal o esquecimento e a lembrança também fazem parte da experiência humana no mundo. Interessante demais, como se estivéssemos em um filme de Maya Deren, "Maya" cria uma relação entre as palavras, algo semelhante que Maya fez com as imagens. Outra relação possível de se estabelecer é uma analogia do corpo de Patrícia com os movimentos poéticos da câmera de Deren. O cinema dela se estabelecia numa mágica que acontecia entre os planos, às vezes quase surrealistas, numa experiência livre dos personagens no tempo e no espaço, e a partir, em muitos casos, da própria presença física de Maya Deren.

Navegar pelos mares de Maya Deren é aceitar a incerteza do mundo, algo entre o real e o abstrato, tendo como contradito uma ideia de cinema ditada profundamente pela organização e planejamento. Maya", a peça-filme, embarca igualmente nessas ondas em que reinam o limiar do factível e o impreciso. No filme "Tramas do entardecer" (1943) temos a porta por abrir, a chave a desfilar e cair por espaços aleatórios, a faca ameaçadora. Na peça-filme temos a luz estrobofóbica, evocadora do transe, aqui o abalo é emocional, psíquico e primitivo, o que está a desabar é o ser humano conflituado, que quer mais do que o mundo está lhe dando. Em Maya Deren são os objetos, em "Maya" a concentração está no corpo ansioso, vibrante e intenso, o que busca a reinvenção e o novo. O filme, como era de se esperar, alimenta a peça, dialoga com ela e por vezes literalmente. Patrícia performa sobre as imagens, cria desenhos com o corpo, ritualiza os movimentos, interage e interfere nas imagens.        


É quase inevitável o público ver "Maya" como um ritual. Creio que seria assim que Maya Deren gostaria de ser revivida em um palco. Com flores, espelhos, negativos de filmes, malas, mar, fogo. "Maya" busca a alma da cineasta. Achei linda e sintética a frase "cineastas fazem filmes, câmeras não". Na mesma monta, atores, diretores, iluminadores, cenógrafos fazem peça, não o palco ou a lâmpada. Os corpos fazem teatro e "Maya" carrega essa feição física como no momento em que Patrícia com uma pequena lanterna escreve poesia inspirada com luz e sombra, desenha com as mãos imagens abstratas e com um espelho nos leva para algo que beira o metafísico. De repente vemos o poder da luz, uma referência muito bela ao próprio cinema e suas possibilidades experimentais, e Patrícia evoca um anjo, ou seria a alma de Maya Deren? E tudo paira e ficamos sem chão a viajar e a flanar naquele tipo de cinema de sombras, com tela e rosto em um mesmo patamar sensível. Me sugeriu ainda uma memória poética ao próprio cinema em P&B e a um tempo em que as vanguardas ousavam sem dó mesmo com poucos recursos disponíveis. 

Tem uma frase dita quase no final de "Maya" que me inoculou: "é uma dor muito grande ser cineasta". Além de ser direta, essa frase nos faz pensar acerca da necessidade que envolve o trabalho de um cineasta, independente das dificuldades que lhes são postas pelas condições materiais, porque em última instância é muito caro fazer cinema, fora que há sempre a possibilidade do fracasso, mesmo depois de se gastar muito para se fazer um filme. Como diz Maya é preciso transcender a si mesmo e  acreditar na força espiritual dos rituais, da iniciação pelo fogo. "Maya" faz essa referência imagética do poder do fogo, do renascimento, da verdade poética do cinema de Maya Deren: "eu morri, minha alma não". 

Como uma das mulheres pioneiras do cinema, a voz e o corpo de Maya cada vez brilha com mais intensidade, assim como tantas outras que a peça-filme faz questão de lembrar e dizer em voz bem alta e clara. Elas são muitas e aos poucos vão saindo da sombra, vão ocupando o lugar que de direito também sempre foi delas. Se houve um momento na história em que Maya foi invisibilizada, hoje trabalhos como esse de Patrícia e Cavi Borges são fundamentais para se reverter personagens e histórias que foram apagadas, mas que agora estão novamente postas à frontalidade da luz. "Maya" traz ainda de lambuja a luz vigorosa de Patrícia Niedermeier, uma das grandes atrizes, performes, dançarinas deste país. Quem assistir "Maya" vai concordar com a minha eloquente afirmação.

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