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MATO SECO EM CHAMAS (2022) Dir. Adirley Queirós e Joana Pimenta

A poesia subversiva brotando dos corpos femininos e periféricos 

Texto de Marco Fialho

"Mato seco em chamas" é o novo filme distópico do cineasta Adirley Queirós, que desta vez divide a codireção com a portuguesa Joana Pimenta, fotógrafa de "Era uma vez Brasília" e também desta obra agora. A obra vem acumulando um número significativo de prêmios tanto internacionais quanto nacionais, todos a meu ver merecidos. Adirley narra uma história em que privilegia o olhar periférico e desta vez com protagonistas inteiramente femininas. Uma das diferenças significativas que reparei em "Mato seco em chamas" em comparação a seus trabalhos anteriores, é o maior engajamento político dos personagens. A maior semelhança está em continuar adotando a perspectiva dos moradores da Ceilândia (Comunidade Sol Nascente, a maior concentração populacional de Brasília), região marginalizada e bem distante do Centro de Brasília e que não está no mapa dos poderosos que a governam, a não ser para oprimi-los e os tratarem como bandidos.     

Outra aproximação com os trabalhos anteriores está na reafirmação da distopia como resultante de uma história de profunda desigualdade social, nos quais os ambientes periféricos tentam sobreviver como podem a uma realidade opressora. Outra novidade interessante de "Mato seco em chamas" está na representação de um grupo que muito lembra atitudes de grupos milicianos, bem comuns na era recente fascista (2016-2022), doutrinados com o lema reacionário "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos", jargão mais do que conhecidos pelos brasileiros e que alavancou nas periferias uma tentativa de extermínio da população preta, e nas florestas resultou no massacre e humilhação pelo abandono dos povos indígenas. Há uma cena em que um miliciano ensina aos outros como corporificar o lema fascista, que vem revestida de toda uma performance irônica e salienta todo o aparato intelectual pueril das crenças desses tristes e medíocres sujeitos, que infelizmente ainda rondam o Brasil de 2023 e devem perfilar sob os nossos olhos por alguns anos. 

"Mato seco em chamas" foi filmado bem na época da campanha presidencial de 2018, inclusive Adirley registra em uma das cenas um ato político dos seguidores bem no dia da vitória do presidente Bolsonaro. As cenas são incríveis e por si reveladoras da faceta mais ignóbil dessa gente que proliferou por aqui nos últimos quatro anos. Nota-se que há um notório contraste entre essas manifestações típicas de uma camada média da população bem alimentada e privilegiada em comparação à secura e o calor do Sol Nascente, que remete mais a ambientes apocalípticos do tipo franquia "Mad Max". Devido a essas aproximações a esse tipo de territorialidade, os trabalhos de Adirley são muito relacionados à ficção científica, por abordar personagens que vivem sob o espectro dos caos e do abandono. Interessante observar o quanto o fogo está simbolicamente presente nesse ambiente, como expressão da tensão vivida ali e como resistência ao poder instituído. 


"Mato seco em chamas" coloca-se hibridamente bem no meio do caminho entre o ficcional e o documentário, compreendendo aqui que todos as protagonistas são personagens reais, periféricos, embora Adirley e Pimenta realizem uma sutil recriação deles para as filmagens. Pode-se dizer que a história é ficcional, mas os personagens são reais. Isso traz uma força imensa para o filme, o potencializa de uma maneira surpreendente. A impressão que dá é que Adirley filma para poder melhor conhecê-las, dando a elas uma voz e uma presença que o mundo a sua volta jamais deram. Precisamos ouvir essas vozes que continuamente são agredidas, caladas e silenciadas pela exclusão que representa o presídio (significativo as cenas em que se mostra um novo e mais moderno presídio sendo construído em pleno Sol Nascente). Adirley e Pimenta mais do que construir para elas uma dramaturgia permite uma organização delas para a luta. Elas, em algum momento da vida, foram segregadas da família e fundam o PPP (Partido do Povo Preso), um partido que almeja participar oficialmente da política e que lança precariamente uma candidata a deputada distrital. Mas Adirley e Pimenta trabalham bem as diferenças sociais no próprio cotidiano. Quando Andreia está em campanha no corpo a corpo pelas ruas da Ceilândia, eis que chega um caminhão com som pesado fazendo campanha com um orçamento bem mais expressivo. Nesse momento, a desigualdade fica latente e mostra o quanto é duro mudar as condições sociais pelos caminhos da política oficial. Mas lembramos o quanto foi expressivo as eleições de 2022 em relação à representatividade dos povos originários e dos pretos e das mulheres. O filme de certa maneira, feito antes das eleições de 2022, anuncia e antevê poderosamente essa retomada da democracia no Brasil e desse empoderamento dessas camadas oprimidas.

Interessante como Adirley e Pimenta trabalham muito do imaginário periférico a partir de uma trama ficcional de um grupo de ex-presidiárias lésbicas (Chitara, Léa, Joana Darc e Andreia) que retiram petróleo do solo e o transformam em gasolina (numa perspectiva de refino deveras obscuro e fantasioso), e depois a vendem para os motoboys. A fotografia de Joana Pimenta dialoga muito bem com esse universo sombrio, dominado pela escuridão e o fogo. "Mato seco em chamas" é concebido pelo preto, amarelo e azul, uma mistura que acentua no filme um aspecto sinistro. Se Bolsonaro organizava motociatas patrocinadas pelo dinheiro público, Adirley usa os motoboys de aplicativo para fazer uma espécie de motociata dos trabalhadores explorados e sem direitos trabalhistas pela campanha das gasolineiras da kebrada. As motos estão também na campanha política das ex-presidiárias. Juntos, eles e elas, formam uma rede informal de solidariedade, não que não haja conflito também, mas os espíritos conciliatório e de sobrevivência sempre prevalecem, como na discussão acerca do valor a ser ganho por cada um na venda da gasolina. 


As gasolineiras das kebradas fazem parte de um tipo de resistência periférica, que largadas a própria sorte, forjam suas subsistências com criatividade e como podem. As protagonistas, como qualquer ser humano, sonham, e esse é um ato político fundamental em "Mato seco em chamas". Em meio a guerra do cotidiano elas fabulam sobre suas vidas e projetam um futuro enquanto riem do passado, por mais que a realidade seja um impedimento efetivo para se pensar no que vai acontecer no dia seguinte. Voltar à prisão está sempre no radar delas, essas são as adversidades da vida que elas precisam superar. As armas estão sempre à mão, a todo momento há uma tensão no ar, uma possibilidade constante de conflito. A música também está ali para discursar e dizer em um papo reto como a "kebrada" vê o mundo, como sente e quer transforma-lo. E kebrada aqui é com k mesmo, porque aqui a quebrada é outra.

Em "Mato seco em chamas" a força das protagonistas se faz tanto pelos discursos como pelas ações. Chitara, Léa e Andreia são mulheres que discursam e agem. Adirley e Pimenta montam uma narrativa muito própria para elas, há um interesse pelo lado marginal das quebradas, não há uma trama a ser seguida, o forte do filme é o quanto se consegue dentro de um ritmo muito próprio ir se conhecendo as personagens, através de suas atividades e pensamentos que vão brotando pelo filme e apesar da temporalidade bagunçada que se impõe, como as cenas que retratam à época da Léa estava no presídio. Algumas cenas não temos certeza se estamos no passado ou no presente, mas ainda assim caminhamos no acompanhamento das personagens. Uma cena não está nunca em continuidade pela história, mas sim a explorar e mergulhar no universo das protagonistas. Percorremos por espaços, por vidas e ideias que transitam e envolvem aqueles corpos periféricos, em luta em um eterno faroeste caboclo. Algumas falas são tomadas como em um documentário, com a personagem falando de sua vida diretamente para a câmera ou em uma conversa. "Mato seco em chamas" mais do que em diálogos, se embasa em conversas, em fabulações sobre a existência dessas mulheres que lutam pelas suas vidas em meio ao inferno e como sabem sobreviver e viver nesse ambiente adverso e seco.  


Algumas cenas são muito simbólicas e representativas no filme. Podemos comentar a que a banda Mulekas 100 calcinha chega para se apresentar em uma boate da favela Sol Nascente e uma das músicas que ouvimos retrata uma relação amorosa e a letra menciona mato seco em chamas e assim descobrimos que o termo se refere a uma mulher que está sedenta por sexo, em chamas. Inclusive, é importante pontuar que a música tem um papel fundamental no filme, já que a todo instante ouvimos uma canção cantada por um artista da própria comunidade. Essa é, sem dúvida, a obra em que Adirley Queirós mais se embrenha pelo universo da Ceilândia e isso dá ao filme um brilho especial. A única exceção de uma música exógena ao universo do filme, seria quando as forças armadas da milícia entram em ação para realizar uma ridícula e patética patrulha e ouvimos Roberto Carlos cantando um grande sucesso do passado, "A montanha", uma louvação bem esperançosa e conservadora devotada a Deus e fala de uma submissão vinda a uma adoração divina e suprema. Essa cena soa bem irônica e os diretores a filmam de maneira bem zombeteira.   

Vê-se em "Mato seco em chamas" muito de Adirley, da sua maneira de ver o cinema, os personagens e o mundo, mas também vemos ali uma Ceilândia intensa, pulsando por dentro, com suas cores ocres vindas do barro do chão e do tom de pele amorenado e preto das mulheres. Os corpos e o território se conectam poderosamente, os diretores vêem ambos como corpos agredidos sistematicamente pelo sistema e promovem a marginalização deles como algo subversivo, uma espécie de "seja marginal, seja herói", uma filosofia existencial presente potentemente no trabalho de Hélio Oiticica. Adirley, disse em uma entrevista, que Joana Pimenta trouxe uma visão de fora para o seu cinema. Fico aqui pensando o quanto ela o ajudou a mergulhar mais no seio da Ceilândia, um lugar banhado pelo estranhamento pra ela, e o quanto isso impulsionou Adirley a se entregar na missão de esforçar-se por entender a Ceilândia mais por dentro, por meio das pessoas que lá habitam e arrumam seu jeito de viver e resistir. "Mato seco em chamas" é o cinema mais interativo de Adirley até aqui, em que tenta não mais representar a Ceilândia no seu filme, mas sim, deixar aflorar a Ceilândia pela sua própria voz. E esse diferencial é um passo a mais, uma nova potência para seu cinema. 


Em "Branco sai, preto fica" e "Era uma vez Brasília" o diretor criou um dispositivo cinematográfico e inseriu alguns moradores reais nele. As encenações aconteceram a partir de um universo sci-fi de naves e aparelhos de teletransporte, ambos concebidos por Adirley para que se ele pudesse vomitar de volta para o sistema uma visão distópica daquele território periférico e desassistido pelo poder público. Em "Mato seco em Chamas", o dispositivo é mais realista, a distopia está nos corpos marginalizados, no solo depauperado e explorado e no petróleo vindo do subsolo substituindo a água dos poços artesianos. Aqui tudo isso grita em uma narrativa placidamente poética, presente e afirmativa em imagem, som e voz. São pequenas revoluções cotidianas. Evidente que a essa voz que agora é dada à Ceilândia sempre foi, e ainda o é e será, plural, vai muito além da pretensão de qualquer filme ou cineasta, mas fica visível que os diretores estão cientes dessa limitação ao realizar "Mato seco em chamas" e aceitam a poesia subversiva que brota dos corpos que habitam esse território.

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