Pular para o conteúdo principal

BATEM À PORTA (2022) Dir. M. Night Shyamalan


Texto de Marco Fialho

O domínio do suspense com conteúdo duvidoso

*Texto com muito spoiler. Aconselhável ler depois de assistir.  

"Batem à porta", novo trabalho do cineasta indiano (quase norte-americano) M. Night Shyamalan reafirma o seu diferencial como diretor de tramas de suspense, embora decepcione quanto ao conteúdo. Desde o início sentimos o suspense atracando na tela. Enquanto a menina Wen, de 8 anos, brinca no aprazível jardim de uma casa alugada pelos pais em plenas férias, vemos a chegada inesperada Leonard, um estranho que puxa conversa com ela. Há uma tensão apavorante nesta cena e ela vem muito da interpretação da jovem Kristen Cui, do olhar sensível e das pausas que ela faz. O temor logo vira terror e a tensão a partir daí só aumenta.

Não é de hoje que Shyamalan é um estudioso do suspense (um fã assumido de Hitchcock, inclusive nas auto-aparições), tanto que aqui todas as cenas são pensadas para a manutenção permanente da tensão de que algo de pior possa acontecer qualquer momento, e convenhamos, isso nada tem a ver com a história, é uma técnica que o diretor desenvolveu para chegar ao ponto que almeja, de manipular os sentimentos alheios ao seu bel prazer. Estou a frisar isso porque se formos parar e analisar o conteúdo de "Batem à porta" veremos que ele está enraizado por algumas premissas contraditórias, outras debochadas e tolas. A perspectiva é clara: tudo está ali para que nos identifiquemos com o casal e não com os 4 lunáticos, e essa é a premissa central, a que guiará nossos sentimentos até um certo ponto, lembrando que "Batem à porta" é sobre a manipulação dos sentidos e nada mais. Tente absorver ou pensar o filme nesse viés e entenderá o que estou a refletir. A escolha de filmar o livro "O chalé no fim do mundo", de Paul Tremblay, vem a calhar, apesar de que Shyamalan muda o final francamente sinistro do livro e o ameniza, abrindo espaço para um futuro mais esperançoso e confortável para o espectador.   

De certa maneira há um chiste na construção de "Batem à porta", um ar de deboche e ao final isso fica bem evidente. Analisemos a história em si, para que possamos pensar melhor sobre ela. A trama acontece porque 4 malucos tiveram a mesma visão apocalíptica e de que uma família precisava sacrificar um de seus membros para salvar o universo. Mas para mim sempre ficou pairando a mesma pergunta: porque teria que ser aquela família específica? Não faz sentido algum e não há justificativas para isso (apenas uma vaga descrição de roupas durante a visão deles). Por que deveria ser aquele casal gay e aquela criança os escolhidos para o tal necessário sacrifício? E porque a escolha de quem deveria morrer deveria ser deles? Por que eles deveriam se matar após a família se recusar a escolher um para morrer? Entendo que são fanáticos e que o ritual por eles acreditado era assim e essa era a premissa da família em negar-se ao sacrifício, mas soam muito forçados esses artifícios. 

Mas há outras coisas intrigantes no enredo. Os fanáticos negam que a escolha da família seria por homofobia, entretanto um dos fanáticos teria no passado agredido ao casal em questão. Outro estranhamento acontece quando Leonard (David Bautista) começa a falar o mesmo texto que vem da televisão, o que sublinha mais ainda o fato de que aqueles programas da TV poderiam ser gravados e que ele já havia decorado as falas dos âncoras do Canal de TV. Tudo soa muito estranho, com exceção do permanente clima de suspense do filme, ele está sempre ali a linear e sombrear a trama obscura e soturna. Aos poucos vamos até aceitando essas estranhas pessoas, as encarando como "pessoas de bem", são professores e enfermeiras, podiam ser nossos vizinhos, mas Shyamalan nos mostra como o desconhecido é terrível, como as ideias sinistras vagueiam soltas por aí e podem tenebrosamente nos abraçar, até em nossas plenas e serenas férias. Me fez lembrar os "homens de bem" aqui do Brasil, que andam armados e até com granadas a defender uma ideia tortuosa de liberdade.          
Mas quero continuar no estranhamento, só que agora no pavor que Shyamalan deixa plantado mais nas sequências finais, como os discursos e as práticas possuem poder de nos transformar. Há algo que não podemos fugir no filme: em algum momento eles acreditam no discurso dos fanáticos, em especial Eric (Jonathan Groff). Será que foi o golpe que levou na cabeça? Essa é outra dúvida que persiste. Esse é o ponto de virada tanto do filme quanto de Shyamalan dando uma chave de braço no próprio livro. Portanto a crença de Eric abre para mim um fosso na história, pois o livro traz uma essência que Shyamalan subverte para poder não radicalizar com o público, a de que a ideia de humanidade é maior do que a de família. Penso que essa é a ideia mais absurda, pois a ideia de família precede a de humanidade. O nosso mundo parte da família, tudo se constitui a partir dela. A ideia de subverter isso para mim torna tudo em "Batem à porta" questionável e inverossímil, seria uma mudança obtusa de paradigma, pois viver sem a família seria o verdadeiro fim do mundo, a maior ideia de apocalipse possível. 

Vem o final e ficamos a pensar: depois que há a concretização do sacrifício e a crença de que então o mundo não acabou e agora se pode recomeçar a vida de onde parou. Seria isso mesmo a ideia que Shyamalan quer nos passar? Para mim, esse é o chiste maior que Shyamalan nos reserva, a de que os fanáticos estariam certos e que aquele sacrifício surreal seria mesmo necessário. A "brincadeira" da música no carro entre Wen e Andrew fala exatamente sobre isso, é a piada final de Shyamalan que zomba das nossas crenças e aposta em um absurdo maior do que a do próprio mundo. Mas ainda fica a pergunta no ar: porque o sacrifício deveria vir de uma família cujo casamento era entre dois indivíduos do mesmo sexo com uma filha adotada? Aí ficamos pensando, do porquê das cenas de flashback do casal? O que elas realmente somam ao filme? Em termos de tensão, nada, só ganha em didatismo sobre os personagens, isto sim. O que vemos na própria trama não seria o suficiente para sabermos suas trajetórias familiares que os levaram ali. Obviamente eles eram bem-sucedidos, brancos, realizados, felizes como casal, oriundos de família de classe média a passar férias em um lugar paradisíaco. 

Como a história se desenhou no filme, o sacrifício de Eric decreta o fim do casal gay. No livro, acontece o inverso, pois quem morre é a menina Wen e o casal prossegue vivo, pronto para um recomeço, mesmo que o mundo caminhe para o apocalipse. Mas esse final do livro, marca uma permanência e uma possibilidade de reconstrução a partir da célula amorosa que é o casal, mesmo que a ideia de hecatombe esteja ainda presente, sem esquecer que essa é uma linda metáfora sobre a força que esse amor representa para o nosso mundo conservador e careta. A vontade de não ferir o público com a morte de uma criança levou o filme para uma solução mais aceita socialmente, embora moralmente duvidosa, pois sacramentou por meio da impossibilidade, o amor entre dois homens. E há entrevistas disponíveis na internet em que os roteiristas esmiúçam suas preocupações meramente mercadológicas e de como o público aceitaria a morte da menina. O maior sacrifício não foi do Eric, do Andrew, nem da Wen, mas sim do próprio Shyamalan ao poderoso senhor mercado. Haja suspense para acobertar tantos sacrifícios.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...