O mundo estridente do cinema mudo
Texto de Marco Fialho
"Babilônia" são três horas de alucinação que flerta permanentemente com o delirante, bem ao modo do diretor Damien Chazelle. Reconheço que tenho uma grande má vontade em relação a pelo menos dois de seus filmes, como "La La Land" (2016) e "Whiplash" (2014), em especial pelos exageros inerentes tanto na dramaturgia quanto no próprio roteiro. Mas confesso que "Babilônia" me surpreendeu positivamente.
O filme se passa durante a passagem do cinema mudo para o falado, desde o final da década de 1920 até o início dos anos 1950, quando o cinema de Hollywood atingiu o apogeu. Talvez o exagero e a megalomania habituais de Chazelle se justifique no tema escolhido, pois a época inicial do cinema nos Estados Unidos nos anos 1920 a indústria ainda estava em construção e havia muito espaço para a loucura. "Babilônia" explora muito bem esse momento em que o cinema mudo começa a perder espaço para o falado ao mostrar o quanto a incerteza e a decadência de uma Era permeia a história.
Chazelle bebe abertamente de referências bastante conhecidas, como "Sunset Boulevard" (1950), de Billy Wilder; "8 1/2", de Federico Fellini; "Veludo Azul", de David Lynch; apenas para citar alguns. Em "Babilônia", o elemento cômico hilariante está presente pontualmente em algumas cenas e sempre muito bem inserido. Chazelle se aproveita do espiral ilimitado da liberação comportamental existente nos anos 1920. Curioso como dos anos 1930 até 1967/68 a sociedade (e o cinema acompanhou esse movimento, basta pensar no Código Hays, que impedia cenas de sexo e de drogas nos filmes) se encaretou com hábitos moralizantes.
Margot Robbie está sensacional como a atriz amoral que não negociou seu comportamento nem com a elite que financiava os filmes. Já Brad Pitt está meio engessado em seu papel, apesar que nas cenas finais sua interpretação cresce em melancolia. Já o ator mexicano Diego Calva está exuberante como o apaixonado Manny Torres. Outro destaque do elenco é Tobey Maguire, irreconhecível, apavorante e fabuloso como o mafioso McKay. O título Babilônia faz referência direta ao período monumental da humanidade em que os homens construíram uma civilização grandiosa. Chazelle quer falar dessa grandiosidade na qual o cinema de Hollywood foi sedimentado, a existência de um afã, de uma vontade de realizar coisas sem limites.
Se a capacidade de criar em Hollywood era ilimitada, a de Chazelle também o é. "Babilônia" é uma avalanche de imagens e sons, de movimentos de câmera inusitados e graves (às vezes até feios). É incrível como Chazelle consegue pensar essa embrionária Hollywood como um momento histórico único e incomum, rico de possibilidades, de absurdos, de riquezas mal geridas, de egos inflados e audaciosos, como um turbilhão de sentimentos e ações inesperadas. "Babilônia" tem cenas memoráveis como a da personagem de Margot Robbie indo a uma festa de ricos e latentes financiadores de projetos para literalmente regurgitar na cara deles. Tem outras cenas extraordinárias como a da mesma Margot cheirando cocaína até não aguentar mais, ou ainda a cena em que ela filma seu primeiro filme falado e a falta de expertise é notória e tudo se torna hilário e grotesco.
Aliás, grotesco é uma palavra que encaixa bem a "Babilônia" e exuberância também é outra palavra que bem define o filme. Creio que Chazelle consegue aqui ajustar os exageros que em outros projetos não lhe caiam tão bem, soavam falsos e até ridículos. A relação da câmera com alguns personagens visivelmente emulou Fellini, nessa capacidade de brincar dinamicamente com a mise-en-scène, de deixar a câmera se deixar inspirar-se pelos atores. Em outros momentos, em especial na sequência em que o personagem de Tobey Maguire aparece, há um quê de David Lynch ou Cronenberg, nesse talento por evocar a podridão, de explorar algo de sedutor e aterrorizante no lixo humano.
E há a homenagem rasgada ao cinema, lógico, que me remeteu de imediato ao clássico de Wilder, mas o colocando em outra dimensão, mais aberta à sordidez humana, assentada mais no inescrupuloso, quase como uma homenagem torta ao cinema, embora a cena em que o personagem Manny Torres chora no cinema assistindo a "Cantando na chuva" é um dos momentos mais lindos que o cinema nos proporcionou nos últimos tempos, não só pela cena em si, mas porque ela foi pensada claramente como um divisor de águas entre dois momentos históricos de Hollywood tanto como indústria como potência narrativa. Chazelle nos convida ali a refletir sobre como aqueles momentos que começam no cinema mudo e perpassam depois o falado foram fundamentais para exercitar essa indústria nascente, o quanto permitiu a experiência, a ousadia, a criatividade e o improviso enquanto ainda engatinhava. Quando Manny Torres entra no cinema, ele está visitando o tempo e se reconhece ali apesar de saber que agora a criança cresceu, amadureceu e deu frutos impressionantes ao mundo, fez a diferença, exatamente como ele sempre sonhou. Essa cena nada mais representa senão a nós, funciona como um espelho para cada um que também ama o cinema.
Marco, o texto reflete o quanto o cinema , de fato, Arte total. Babilônia, idem. Sobretudo, pelo grotesco e pela estranheza que nos forma : do lixo ao belo, Babilônia.
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