Beth Carvalho e a sede de transformar o Brasil
Texto de Marco Fialho
Quem me desculpem os streamings e os links, mas a experiência de assistir a um filme coletivamente na sala de cinema lotada e poder ouvir suspiros, choros, risos e sentir os corpos pulsando ao nosso lado não tem igual. Foi nesse clima que assisti "Andança: os encontros e as memórias de Beth Carvalho", como a um filme vivo a despertar emoções latentes em todos os presentes.
Que obra estupenda esse documentário de Pedro Bronz, afora a grande personalidade que foi Beth Carvalho, que creio que qualquer filme sobre ela não conseguiria fugir, esse "Andanças..." mescla arquivos de programas de TV, depoimentos em áudio com os vídeos realizados ora pela própria Beth Carvalho ora pelo seu motorista que registravam todos as saídas as rodas de samba que ela tanto gostava de prestigiar. Logo no primeiro vídeo, no saudoso e tradicional Bip Bip, um dos sambistas já vai logo detectando: "Beth Carvalho, nossa cineasta". E a própria Beth, logo depois sublinha: "documento a vida dos outros e a minha. Minha casa é um arquivo." O diretor Pedro Bronz, desde o início prescreve qual será a base de seu filme, os arquivos pessoais da própria artista.
Assim o documentário vai avançando, mostrando como João Gilberto a despertou para música ao mostrar que uma canção podia ser cantada sem se impostar a voz. Mas esse então menina serelepe logo cansou do elitismo dos apartamentos bossanovistas e se encantou com o samba nos terreiros, ruas e quintais, pelo uso dos espaços públicos e coletivos. Nas Escolas de Samba e no mundo descobriu os sambistas quase todos desconhecidos e desprezados pelos esquemas das gravadoras. Conheceu e projetou Nelson Cavaquinho e Cartola. Do primeiro dizia ser o maior compositor do mundo, do segundo, descobre músicas geniais e então desconhecidas, como "As rosas não falam" e "Meu mundo é um moinho", joias preciosas da nossa música. Há ainda uma conversa genial com Cartola e ele dizendo que "Meu mundo é um moinho" não encaixava no estilo musical dela, "é muito lento para você, digo com toda a sinceridade".
Esse documentário resgata com abundância muitas histórias e personagens, o que nos emociona fortemente em vários momentos. Quando Beth fala com Dino Sete Cordas, um músico extraordinário, uma escola desse violão tão brasileiro, ficamos tocados ao vê-lo ensinar como distribuía as cordas de aço e nylon no violão, revelando segredos maravilhosos e encantadores sobre o instrumento que trazia no nome. De repente vamos sentindo que o filme de Bronz está a nos contar uma importante parte da história do samba, além de nos propiciar cenas emocionantes, como Beth cantando em homenagem ao primeiro ano sem o mestre Cartola, com direito a um close nos olhos marejados de D. Zica. E assim o documentário vai nos tomando, passando pelo quintal mágico de Tia Surica, onde vemos Manacéa cantando um samba inédito, acompanhado de Casquinha, Osmar do Cavaco e tantos outros bambas maravilhosos da Portela.
A maior graça deste documentário é a escolha que o diretor faz em relação ao ponto de vista do que vemos. Pedro Bronz já revelou em entrevistas que Beth era amiga de longa data de sua mãe e por isso ele tinha conhecimento sobre os vídeos realizados pelas sambista. Há em "Andança..." um clima de intimidade a partir desse material inédito. A qualidade dele é bem precário, alguns com a imagem bem desgastadas. Pedro Bronz assume isso como parte do processo e aposta na originalidade do filme, já que o acervo é inteiramente pessoal. Claro que esse material se mistura com outros materiais de TVs e outras entrevistas. Essa perspectiva é fascinante por possibilitar o acesso à personalidade firme de Beth, uma líder orgânica que juntou cultura, política e samba no mesmo balaio e mobilizou vários artistas em prol das causas sociais que ela sempre se posicionou e lutou para transformar. Como ela gostava de dizer, "antes de ser uma artista, eu sou uma cidadã. E eu gosto de quem valoriza e se dedica ao povo brasileiro."
Por ter essa aproximação com a vida de Beth Carvalho, Pedro Bronz pode desenvolver uma pesquisa acurada e viva, pois muito do que está no filme vem da sua própria memória. Um dos momentos mais importantes do documentário é quando aborda um dos movimentos musicais mais extraordinários do país, quando se aflorou a flor do pagode de mesa, nessa ideia de tirar a cultura das ruas e trazer para o disco. Assim nasceu para o mercado de discos Zeca Pagodinho, Arlindinho Cruz, Jorge Aragão, Fundo de Quintal, Jovelina Pérola Negra, Luiz Carlos da Vila, Almir Guineto e tantos outros que jamais haviam gravado em estúdio. Beth trouxe a festa das ruas para o disco e para o conhecimento do país. O samba chega a patamares de sucesso sem igual. Conforme ela diz em um dos vídeos, "o pagode estourou de dentro para fora". Beth almejava levar para o estúdio uma verdade que ela via nas ruas, nos pagodes de mesa e nos quintais das tias do samba.
A busca dessa verdade das ruas se traduzia em tentar tirar das gravações qualquer ranço elitista, que tentasse traduzir o que vinha do povo. A simplicidade dos arranjos era buscada, assim como introduzir nos arranjos as inovações que ela vivenciava embaixo das tamarineiras nos pagodes do Cacique de Ramos, por isso Beth se metia em cada detalhe do arranjo, seja na maneira de tocar o violão seja na cozinha (instrumentos de percussão). Como dizia Beth Carvalho o importante era valorizar no país a brasilidade. E o que seria essa brasilidade? Para ela uma só palavra a definia: negritude. Essa consciência política do seu próprio trabalho foi um dos maiores diferenciais dessa mulher de caráter irretocável e com fome de justiça.
Ela conhecia o solo onde pisava e não deixava passar nenhuma oportunidade de fazer a diferença para que o país diminuísse o histórico abismo social no qual estivemos eternamente submetidos. Ela foi uma das vozes que lutou contra a ditadura e pelas Diretas Já, queria que chegasse a hora da virada, a hora do povo dar o troco nos poderosos que sempre o oprimiram. Jamais negou a sua voz para as causas que almejassem a transformação do país, mesmo nos momentos onde já muito debilitada pela doença chegava a cantar deitada, sem deixar a peteca cair. Beth foi um grande exemplo para todos os artistas e também para o seu povo. Ela foi a artista que melhor representou a voz do povo. O documentário de Pedro Bronz é genial por deixar tudo isso aflorar e por nos conquistar pela sua força e beleza.
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