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A BALEIA (2022) Dir. Darren Aronofsky

A balela

Texto de Marco Fialho

O famoso barroquismo do diretor Darren Aronofsky mais uma vez é reafirmado em seu último filme, "A baleia", baseado no livro homônimo de Samuel D. Hunter e roteirizado pelo mesmo. Se em "A mãe", o diretor vinha demolindo cena a cena a casa da protagonista, aqui ele faz o mesmo, só que agora a demolição é do personagem Charlie, interpretado com o máximo de entrega possível por Brendan Fraser. O ator ganhou muito peso para fazer esse papel, em que vive um professor de redação que sofre de obesidade mórbida e dá aula on line para poder esconder a imagem. O filme se passa todo na casa de Charlie, entre a sala, o quarto e a pequena varanda da frente, além de na tela de um computador. 

Até quando o diretor Aronofsky apostará todas as fichas de seus filmes nos costumeiros exageros? Em "A baleia" existem pelo menos dois. O primeiro, o próprio personagem Brendan Fraser, que além de ganhar peso ainda precisou de próteses para enfatizar a obesidade e a ideia é construída para que vejamos Charlie como uma aberração. Segundo exagero está na narrativa melodramática na qual Aronofsky sustenta a obra. O peso de Charlie impressiona menos do que a narrativa que clama incessantemente pela indulgência do público. O uso da música enfatiza o melodrama das cenas, inflando emoções que já estão em cena devidamente dramáticas pela história em si.  


O título "A baleia" remete ao clássico livro de Herman Melville "Moby Dick", onde se narra a obsessão de vingança de um marujo para capturar a baleia que lhe retirou uma das pernas. A história de "Moby Dick" se infiltra no filme como uma metáfora óbvia de um homem sabedor do próprio destino, mas que mesmo assim caminha ao seu encontro. Aronofsky constrói Charlie a partir do peso de sua história pregressa, o passado em que Charlie troca o casamento hétero por uma relação homoafetiva e a ladeira abaixo após esse acontecimento. Ellie (Sadie Sink), a filha do casamento hétero reaparece depois de alguns anos e Charlie tenta resgatá-la desesperadamente, a comprando com 120 mil dólares de herança e com aulas de redação. Mas o que mais fica são os insultos gordofóbicos e homofóbicos que ela profere insistentemente. Tudo soa muito piegas ou apelativo, ainda mais quando a filha posta na internet imagens do pai com o seu estado físico atual. Aronofsky perde a oportunidade de discutir nessas cenas um dos temas mais importantes da contemporaneidade, o do abandono paterno. Fica apenas Charlie tentando se apegar à filha numa tentativa tardia de redenção. Fica claro uma homofobia em alguns diálogos, que Charlie não procura a filha porque a mãe não deixava, ele diz isso e a própria mãe reafirma que o pior da separação deles foi ela ter sido trocada por um homem. A frase "o homem buscava nos salvar de sua triste história", repetida algumas vezes por Charlie é bem significativa em relação à redenção pretendida, pois a triste história aqui seria referente a quê propriamente?     

Há uma premissa implícita em "A baleia" que realmente incomoda. Charlie é um personagem emocionalmente caótico e tremendamente infeliz, que vive dos favores da amiga enfermeira Liz (Hong Chau), que vive o acudindo e evitando uma internação (a única coisa sensata a se fazer nesse caso) que levaria toda a economia que fez durante a vida. Charlie vive com a pressão nos píncaros e inversamente com a qualidade de vida no chão. Ao tratar tudo no limite do drama de Charlie, e o exacerbando ilimitadamente, Aronofsky afunda o filme no melodrama apelativo e carrega o público junto com ele. Esse formato de abordagem é problemática porque nos domina pelas vias do emocional, nos retira da fruição minimamente racional e reflexiva para nos empurrar para uma dependência ao sistema nervoso. Ficamos reativos e irascíveis perante ao filme. Não à toa, é comum ouvir relatos de espectadores que saíram derretidos de tanto chorar no cinema. Nada de mais isso ocorrer, mas quando se perde essa medida quer dizer que ficamos inteiramente à mercê, não conseguimos nos deslocar o mínimo possível para fora do filme para poder também pensa-lo e não apenas senti-lo. Essa proposta é extremamente limitadora do ponto de vista cinematográfico.  


Há em "A baleia" um sentimento dado pela construção dramática e narrativa de que a infelicidade de Charlie se deu tanto pelo abandono da família hétero quanto pela obesidade mórbida que desenvolveu, o que para mim é deveras complicado, porque pelo viés fenomenológico, a infelicidade nada tem a ver com escolhas do personagem, nem está necessariamente relacionada com a orientação sexual. A infelicidade pode desabrochar em héteros, magros e em quem pratica dietas balanceadas. Essa confusão dramatúrgica realizada por Aronofsky para fisgar o emocional dos espectadores é pobre e nos leva a premissas falaciosas. A vida das pessoas não se resume a fatos somente, há várias outras complexidades que nos escapam como seres vivos sociais que somos. Para sustentar seus exageros apelativos e impressionar parte da audiência, Aronofsky descamba para estratégias de manipulação grotescas de emoções e pelo conhecimento dos códigos cinematográficos para acentuar traços doentios do personagem e impactar os espectadores. Porque cinema também é e acontece na maneira como o diretor se relaciona com o público, e neste quesito, convenhamos que Aronofsky sempre ultrapassa todos os limites da razoabilidade.  

Um dos personagens que enxergo como um dos menos atrativos é o de Thomas (Ty Simpkins), um jovem religioso da igreja Nova Vida que tentar salvar Charlie pela fé, enquanto eventualmente flerta desengonçadamente com Ellie (o que também não contribui em nada para o filme, inclusive há uma barriga imensa quando ele se tranca no quarto enquanto ela de fora grava a conversa deles). Esse personagem não acrescenta muito à história e sempre que ele está em cena o filme perde demais em interesse. Logicamente, as suas várias tentativas de redenção não funcionam, pois já sabemos desde o início qual será o destino de Charlie. Religião dele e a ciência da enfermeira acabam por desviar a todo o momento a discussão de que homem é esse que vive uma grande crise existencial, não basta apenas constata-la, enriqueceria muito à trama destrincha-la. Aronofsky prefere explorar apenas os excessos, colocando sua câmera em ângulos que cada vez mais levam o personagem para o abismo, não só físico como também narrativo. A câmera o diminui a todo o momento como sujeito. Ela o circunda, mas sempre para retrata-lo como anomalia, como aquele que não consegue comer, andar e levantar sem causar um estrago.

Manipular imagem e som faz parte do processo do cinema e todos estamos cientes disso, mais usar isso apenas como estratégia sensacionalista para vender seu filme e a essa balela eu não assino embaixo. Engordar um ator, colocar próteses para aparenta-lo mais gordo ainda e assim impressionar mais, colocá-lo como um ser que desperta nossa piedade, pode até fazer Brendan Fraser ganhar um Oscar, mas eu preferia sentir esse Charlie como um homem, não como um títere a manipular os sentimentos mais instintivos presentes em todos nós. Há embutido em todo esse processo fílmico doses de gordofobia e homofobia, vendidos como pecados a serem veementemente combatidos. Aronofsky mostra-se um moralista ao situar o filme em torno da ideia de se buscar as motivações que levaram aquele corpo à obesidade mórbida. Charlie fala diversas de honestidade consigo mesmo e com os alunos, mas essa honestidade não existe no roteiro, só existe uma manipulação barata dos sentimentos do público. Em "A baleia", imagem e som estão coordenados e condenados a prestar um desserviço à arte e a sua relação com os valores mais essenciais como empatia e generosidade. A cara que os alunos on line fazem quando Charlie abre a câmera pela primeira vez e mostra seu corpo é o que mais diz sobre como o filme alcança as pessoas. Prestem atenção a essa cena. Tudo é mostrado como um assombro e infelizmente uma  possibilidade de humanidade vai ladeira abaixo nesse momento. O choque vale mais do que um "vamos conversar sobre a vida"? A vida merece bem mais do que isso, e francamente, nós também.

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