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TRÊS TIGRES TRISTES (2022) Direção de Gustavo Vinagre

Um aventura viada de explícita beleza    

Texto de Marco Fialho

Preciso começar esse texto contando um babado e ao mesmo tempo fazendo um desabafo: que tiro estupendo é "Três Tigres Tristes"! Não tenho o menor receio de afirmar que se trata de uma das comédias mais inteligentes já produzidas no país nos últimos vinte anos, e com uma interpretação mais interessante do que a outra do trio protagonista (Jonata Vieira, Isabella Pereira e Pedro Ribeiro). Até as participações especiais são fenomenais, com destaque para a sensacional Gilda Nomacce em um papel pra lá de hilário e Cida Moreira numa performance espetacular tanto como cantora quanto como atriz. A música está inserida em "Três Tigres Tristes" como um bálsamo. Digo isso não só pela parte próxima ao final (a do cabaré lúdico de Cida Moreira), mas também pelo que se apresenta no decorrer de toda a trama, com destaque para as músicas compostas pela dupla de cineastas Marcos Dutra e Caetano Gotardo.          


Gustavo Vinagre está inspirado como diretor nessa espécie de walk movie que é "Três Tigres Tristes", com um roteiro brilhante (feito a quatro mãos com Tainá Muhringer) e diálogos igualmente perfeitos (ouso dizer um dos mais incríveis que vi recentemente, impecáveis, dignos de uma aula). A câmera passeia viadamente em cena, flutuando tanto quanto nós espectadores, um deleite. Tudo se desenha como se fora uma contagiante ode LGBTQIAPN+, expressiva no caráter, com uma construção de personagens amorosa, regada por uma intimidade espontânea e uma mise-en-scène muito bem orquestrada, com fundo e plano se fundindo organicamente e que deixa os personagens fluírem em perfeita comunhão com a vida. Vinagre toma de tal forma a narrativa para si que sai do realismo para a fantasia queer sem cerimônia, com uma naturalidade impressionante. Apesar da forte presença da comédia, tudo é tão bem dosado que aflora uma genuína verdade e isso muito se deve a vontade que emana de cada ator que está em cena, graças a habilidade de Vinagre em dirigi-los. E quem já acompanha sua trajetória profissional sabe o quanto ele é cúmplice dessa "trupe" que está ali há tempos ao lado dele.      

Mas "Três Tigres Tristes" não deixa de ser também uma homenagem a uma determinada São Paulo, a dos arredores do Bairro da Liberdade, urbana até o pescoço, (mal) desenvolvida, caótica (demais), contraditória (sempre, no cotidiano), historicamente mal-ajambrada (a cena em frente à igreja é marcante quanto a isso) e sobretudo diversa (os personagens não nos deixam mentir). O protagonismo da cidade brilha em boa parte do filme, com praças, ruas, prédios e viadutos (inclusive com a pobreza debaixo deles) a interagir com os personagens, embora nem sempre afetivamente já que a cidade se mostra hostil e acabe por adoecer os que vivem nela. Gustavo Vinagre contrasta com eficiência a aridez dessa vida distópica de Sampa com o humor gracioso que é inerente ao universo LGBTQIAPN+, o que faz emergir um efetivo e poderoso cisma comunicativo, por meio de uma ação narrativa vinda da direção e outra afetiva que flui a partir dos personagens. 


Tem cenas marcantes como a da divisão quase bíblica dos pães (ou subversivamente bíblica, sei lá), onde a articulação entre diálogos e enquadramentos se irmanam como vi poucas vezes no cinema. A da maquiadora preta a vender seus produtos fazendo lives pandêmicas criativas pelas ruas de São Paulo e sem falar na cena que se passa na casa do velho mona Omar (um Everaldo Pontes inspiradíssimo e deslocado do ambiente nordestino machista que lhe é sempre familiar), onde a elegância se encontra com o talento cômico. E a cena da criança viada com a mãe nas ruas de Sampa, interpretada por Julia Katherine (outra habituê nas obras de Vinagre), rápida e que garante em uma das mais hilárias do filme? E a drag toda montada e com o make super em dia vendendo o porco espinho chamado Intransmissível  e explicando que o bicho era uma drag queen e que inspirava cuidados especiais como cremes e outros apetrechos? E o que dizer da aparição performática e inusitadamente queer da afetada Inês Brasil? Vou ficar nessas apenas para citar algumas cenas que por si já valeriam ver o filme.                    
                                   
Há uma sacada genial e metafórica de manter/subverter nossa recente neurose pandêmica a la Vinagre, utilizando-se de um esperto e apropriado chiste, substituí-la por uma nova doença, na qual o paciente perde temporariamente a memória, uma analogia perfeita para os últimos 4 anos de nossa política e sociedade, como se precisássemos esquecer o que vivemos e sofremos nesses tenebrosos tempos. "Três Tigres Tristes" tem uma vibe espiritual que lembra muito a atmosfera energética leve e deliciosamente subversiva dos primeiros filmes de Almodóvar, apesar de preservar intacta a sua própria originalidade tanto narrativa quanto interpretativa. Depois de longas inaugurais promissores como "Lembro Mais dos Corvos" (2018) e "A Rosa Azul de Novalis" (2018), Gustavo Vinagre realiza a obra mais madura da carreira com "Três Tigres Tristes", um filme que alimenta um desejo irrefreável de se comunicar com o público.


Os três protagonistas estão soberbos, integrados, carismáticos e cativantes. Saímos do cinema querendo conhecê-los e convidá-los para um rolê pelas ruas de Sampa. De repente, a personagem de Cida Moreira, proprietária de um antiquário, que diz ouvir o que pensam os objetos inanimados, prega que esquecer é ótimo e convida os três tigres para embarcar numa viagem regada à música e delírio queer. O filme entra então numa viagem onírica e libertária, que quase descamba para um outro filme, mas Vinagre não deixa e a incorpora a tempo ao processo. Realmente há uma beleza no esquecimento e ela está no que resta: o presente, e isso não deixa de ser uma ideia de aventura explícita, bela e viada que Vinagre nos convida a participar. Otário é quem não topar entrar, seja por preconceito ou pura preguiça.  

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