O resgate de um artista que lutou por um outro Brasil
Texto de Marco Fialho
A minha paixão pela música brasileira vem de berço e a minha coluna "Músicas que habitam em mim", não me deixa negar. Assistir a videomontagem "Taiguara: onde andará teu sabiá?" mexeu muito comigo, além de despertar prazerosas memórias afetivas. Entendo a nomenclatura que o diretor Carlos Alberto Mattos optou por utilizar para definir sua obra, afinal, não há uma finalização de imagem e som nesse filme (embora fosse fantástico se isso ocorresse), mas há, para compensar, visivelmente coração, conhecimento, respeito e muita admiração pelo grande e injustiçado cantor e compositor, que apesar de ter nascido no Uruguai, quis o destino que dedicasse a vida inteira ao Brasil. Taiguara sempre teve muita proximidade com o meu ambiente familiar, em especial, pelos ideais marxistas que sempre torneou minha formação política e evidentemente a dele também. Essas congruências me atingiram em cheio enquanto assistia com toda atenção esse surpreendente documentário.
Se temos uma grande tradição em nossa cinematografia de documentários que tratam de personagens da nossa música popular, o filme enfatiza uma imensa lacuna ao resgatar a personalidade musical e política de Taiguara, põe em relevo a riqueza de uma trajetória ritmicamente plural e identificada com a pesquisa das tradições populares. Taiguara dedicou a vida para falar e fazer música para o povo. A videomontagem tem um dado narrativo fundamental, a de escolher contar a história de Taiguara a partir de depoimentos e canções do próprio, sem interpor nenhum intermediário e isso é crucial para que embarquemos numa viagem ao centro nevrálgico da sua altiva criatividade. "Taiguara: onde andará teu sabiá?" é uma imersão nesse universo tão lúdico de um país que parece estar eternamente se improvisando, onde artistas teimam em semear um terreno árido e superficial. Resgatar Taiguara nesse momento político é dizer com imagens, mesmo que essas já se encontrem a maioria bem desgastadas (afinal assim encontram-se nossas lembranças), é reiterar que temos uma memória de contestação, que o passado não é só de resignação, é também feito por lutas incansáveis e belezas fugidias. Os nossos artistas, e eu falo de artistas como Taiguara, são a antítese dessa história sistematicamente corrompida por poderosos inescrupulosos e letais.
E olha que são muitas histórias e músicas que o nosso Carlinhos resgata para todos nós. Sim, das mãos de um dos nossos maiores críticos nasce uma obra entusiasmada e apaixonada, de quem conhece o caminho das pedras, pelo menos das pedras quando alinhavadas pelos outros, mas que aqui precisou pensar na sua própria rota narrativa. E não é que nosso especialista em documentários, ou craque em desconstruí-los pelas palavras, mostra viço quando se coloca do outro lado da função, como realizador e construtor? Há uma pesquisa bem profícua orquestrada por Carlinhos, de diversos materiais de arquivo, organizados e costurados na maioria das vezes por uma ordem cronológica. O mais incrível é como a alma revolucionária do artista se impõe a cada cena e encanta a quem igualmente cultiva o mesmo sentimento transformador desse personagem tão essencial para o país. Quem conhece Carlinhos sabe o quanto tudo isso também o aproxima tanto desse cativante artista que escolheu carinhosamente agora retratar.
Se um bom documentário necessita de um bom personagem, em "Taiguara: onde andará teu sabiá?" ele é mais do que isso, ele é transbordante e afirmativo. O comprometimento e o engajamento político de Taiguara faz dele uma personalidade única em nossa música. Se Milton Nascimento um dia disse que "todo artista tem ir aonde o povo está", Taiguara foi um dos que mais levou a sério essa máxima. Taiguara viajou o mundo buscando a alma genuína de seu povo. Se empenhou em muitas lutas políticas populares, lutou bravamente contra a ditadura militar e pelo movimento das Diretas-Já, além de pedir voto ao PDT quando fundado por Brizola e aderir às ideias comunistas do líder Luiz Carlos Prestes. O filme ainda nos lembra das viagens culturais transformadoras, onde Taiguara visitou tribos indígenas, e a mais marcante, a que conheceu a negra Tanzânia, em companhia do genial pedagogo e filósofo Paulo Freire. Mas o grande destaque são os deliciosos e saudosos números musicais que constituem a parte mais emocionante desse imenso resgate. Reouvir músicas como "Universo no teu corpo", "Hoje", "Helena, Helena, Helena", "Viagem" e tantas outras inspiradoras que misturam, com a devida verve, política, sexo e amor na mesma letra, que emocionam e nos fazem pensar ao mesmo tempo.
"Taiguara: onde andará teu sabiá?" consegue a todo o momento amarrar à vida cultural rica do compositor o charme de suas belas canções, entrelaçando sempre com eficácia vida e obra. Do começo na Bossa Nova, passando pelos festivais até as músicas românticas, sem jamais esquecer das canções políticas que jamais deixou de cantar, inclusive a bela "Cavaleiro da Esperança", dedicada a Luiz Carlos Prestes, o lirismo eloquente de Taiguara está permanentemente presente. Carlinhos assume as precariedades de quem juntou e organizou todo esse rico material por conta própria, e realiza um documento inestimável, principalmente para quem aprecia a árdua tarefa de quem se atreveu a viver de música em um país que desvaloriza e despreza insistentemente a sua memória.
Essa obra, aparentemente despojada, une, em um só golpe, política e arte, justamente agora em que as políticas culturais foram jogadas para o escanteio pelo pior governo da nossa história, precisamos recuperar a nossa energia vital relembrando a luta de artistas corajosos e revolucionários, tal como foi a trajetória épica de Taiguara, um brasileiro da luta revolucionária e das belas canções.
Assista no link abaixo ao filme "Taiguara: onde andará teu sabiá?"
Puxa vida, Marquinho! Seu texto me comoveu pela generosidade do olhar e o reconhecimento do imenso valor do nosso querido Taiguara. Fico imensamente agradecido.
ResponderExcluirCarlinhos, nós que precisamos agradecê-lo pelo esforço e imenso afeto ao fazer o filme.
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