Meninas que lutam pela vida e a arte
Texto de Marco Fialho
Assim que a pandemia deu uma amainada, em especial depois da vacinação, muitos esperavam uma avalanche de filmes (documentários e ficcionais) que refletissem sobre esse penoso e torturante período, em especial aquele que vivemos às cegas, contando cada novo dia como sobreviventes e lembrando que tínhamos um governo negacionista que virou às costas para compra de vacinas e campanhas de vacinação, que ainda tentou uma negociata com a Covaxin, o que felizmente a CPI da Covid brecou.
O curta-metragem "Meninas", dirigido por Hamilton Rosa Jr., pode ser apontado como uma das produções que buscou não só inserir o tema, como também ficcionalizá-lo e o fez com muita sensibilidade e poesia. O filme captura não só um olhar como um sentir feminino e esse viés traz ainda uma vivacidade apaixonada, representada por cinco amigas de infância, agora mais idosas, que tem como principal marca uma celebração constante da vida. São corpos que de uma hora para outra se colocam em uma situação muito específica, a de precisarem sobreviver à pandemia do Coronavírus. A estrutura cíclica que inicia e termina pela ideia de infância reforça a atmosfera lúdica e o olhar feminino que o filme encampa.
Permeia na direção de Hamilton um registro delicado da luta dessas carismáticas personagens pela vida e pelo amor à arte, da vontade de existir e reexistir pelas manifestações que a arte possibilita e evoca de uma só vez. No início, fiquei com uma impressão de certa ingenuidade, mas aos poucos fui observando que eu estava equivocado, que tratava-se de afeto em excesso, e como pontuar isso como algo prejudicial à narrativa? Pode-se até dizer que algo meloso escorra aqui ou acolá pelas bordas da construção dramatúrgica, mas sempre envolvido por um sentimento profundo de empatia que nos ganha logo a seguir e nos faz querer continuar caminhando com aquelas meninas por perto até o fim.
Talvez, quando assistirmos a "Meninas" daqui a vinte anos, possamos vê-lo também como uma espécie de documentário sobre a pandemia, pois nele estão gravados vários hábitos muito comuns e marcantes do período de ápice da pandemia, que duraram dois anos, como a paranoia de passar álcool em tudo que chegava a nossa casa, as reuniões em videochamadas de grupos de familiares e amigos, o uso constante das máscaras de proteção (incluindo a marcante face shield), a falta de abraço, as ruas vazias, o desmantelamento emocional pela falta de convívio e os encontros tentando manter o distanciamento. Todos esses detalhes estão no curta, inclusive uma dose de latente emoção em cada cena filmada. Devido a um transbordamento constante de emoções, me incomodou um pouco a existência de um piano insistente, sempre a acentuar por demais os sentimentos que de antemão são fartos na obra, que talvez prescindissem da música a sublinhar o que já sentimos com as imagens e as ótimas interpretações das atrizes.
Em "Meninas" o lúdico caminha a todo o instante lado a lado com o sombrio e tendo a memória como um elemento fundamental para nos reconectar diariamente ao mundo. Ambos estão presentes, o terror e a esperança; a dúvida e a incerteza da vida que já é por si, por natureza, tão incerta. E Hamilton é profundamente delicado quando aborda a morte de uma delas, preferindo a sutileza ao invés da mensagem abrupta, antes de tudo é uma descoberta que fazemos por meio de uma simples imagem e aí sim, acompanhada por um silêncio cortante mais potente do que qualquer som ou música, o silêncio anunciador da morte.
Em "Meninas" há um aspecto que muito me chamou a atenção e me tocou, que é o fato de como a política se insere na trama e na própria dramaturgia do filme. Ela está quase como uma personagem fantasma a rondar as meninas, até que na parte dos monólogos ela irrompe com a devida energia e força. Interessante como o filme constrói uma ideia de que a dura realidade do país nos obriga a adotar posições políticas para que possamos reverter a situação absurda a que fomos submetidos por um governo indiferente à vida, incentivador da morte e odioso às artes, que por sua vez, e acentua o papel das artes tiveram no questionamento e para por alguns políticos em seu devido lugar. A arte ocupando seu espaço independentemente do apoio oficial e é isso que os monólogos nos oferecem, a arte expurgando a dor, retrabalhando o nosso sentir e pensar, nos impingindo um processo de autodescoberta como seres políticos, sem abrir mão da aura mágica e da invenção. É a arte, antes de tudo, sendo arte!
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