Pular para o conteúdo principal

A ÁRVORE DOS FRUTOS SELVAGENS (2018) Direção Nuri Bilge Ceylan


Cavar, cavar e cavar até achar a nossa misteriosa água subterrânea

Texto de Marco Fialho

O premiado cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é um dos mais emblemáticos de sua geração. A força do cinema que faz impacta de imediato pela potência tanto da narrativa quanto das imagens inspiradoras que registra a cada nova cena. Incrível como ele vai nos aproximando de Sinan (Dogu Demirkol), o jovem protagonista desse monumento que é "A árvore dos frutos selvagens". Acredito que de toda a sua filmografia, esse é o título que mais me comoveu, até mais do que outro filmaço do diretor que é "Sono de inverno" (Winter sleep), de 2014.   

Ceylan equilibra com maestria a introspecção de Sinan com toda a estrutura social, em especial a familiar e constrói uma obra arrasadora, profunda, cálida e com enorme fluência narrativa, mesmo apesar de sua longa duração. O central do filme é a trajetória de Sinan que retorna a sua cidade natal depois de formado como professor e ansioso por publicar o seu primeiro livro. É sempre impressionante assistir como Ceylan incorpora a paisagem de maneira tão orgânica às obras, como um convite a desfrutar esse ambiente juntos aos personagens. Vale ressaltar o quanto competente é a direção de atores de Ceylan, que sabe tirar de cada cena sempre o melhor deles. Dogu Demirkol faz um Sinan como um jovem comum, simples em sua camada externa, embora complexo e repleto de conflitos internos. A bela atriz Bennu Yildirimlar, faz uma mãe impecável, sensível e inteligente. O maior destaque para o ator Murat Cemcir, como Ídris, o pai, que se equilibra com talento em um personagem complexo, cheio de contradições e central para o entendimento da trama.     


Há um mergulho existencial no personagem Sinan, que vive as agruras de querer ser escritor de romances em meio a uma sociedade que pouco valoriza os ofícios ligados às artes e onde não há um espaço para que haja um início de um processo profissional. Ao que Ceylan indica, as possibilidades profissionais são poucas e extremamente práticas. As profissões mais lúdicas não possuem espaço, ficam em um eterno limbo e nos sonhos de Sinan. Vez por outra, algumas cenas de sonho perturbam a lógica narrativa até que percebamos que elas representam apenas medos de Sinan. "A árvore dos frutos selvagens" fala de repetição de ciclos geracionais, como filho de professor, professor também o é. Ceylan desfila essa temática com leveza e a flutua permanentemente durante toda a projeção. 

Talvez aqui alcancemos algo significativo para se pensar "A árvore dos frutos selvagens", cujo título original ao pé da letra seria "A pereira selvagem", exatamente o título do livro que Sinan escreveu e quer lançar. Inclusive em uma das falas de Sinan fica claro que o livro dele não é sobre o lugar, mas sim sobre a pereira, enfatizando a árvore e os frutos dela. Esse é um sinal importante que Ceylan sublinha na obra, o de reafirmar a relação entre as gerações, do que era, ainda o é, e o que precisaria ser. Mas evidente que é mais do que isso, é sobre o que queremos ser e o que podemos ser quando tudo a nossa volta já está preestabelecido, quando as regras estão postas de antemão e as margens para mudança são quase nulas. Daí nascem  diversos simbolismos no filme. Quando Sinan encontra a jovem Hatice, na qual projetaria uma relação amorosa e constata que tudo ali já está decidido acima do desejo de qualquer pessoa, impera sempre um sentido de praticidade perante a vida, sem se dar um espaço sequer ao lúdico ou a qualquer manifestação por meio da arte. Encarar a vida adulta deixa no corpo e no espírito as marcas da impossibilidade, a impressão de que servimos apenas como uma peça que fará a roda da fortuna girar para quem a controla.  


Queria ainda falar dessa cena breve, embora significativa, do encontro de Sinan com a jovem Hatice (Hazar Ergüçlü) no campo, uma das mais belas do filme. Nela, ambos personagens não estão exatamente no presente, eles estão no futuro e regidos pelo passado. Essa noção de temporalidade é reforçada por um singelo vento que inesperadamente chega um pouco mais forte, como se por um breve momento desestruturasse o presente (ou até o jogasse em uma espécie de limbo). O cabelo da bela Hatice esvoaça e esconde seu rosto. Tudo é muito rápido, como se aquele instante, como um flash, espalhasse uma eternidade, uma verdade acima das tradições arraigadas e acachapantes. Vem um beijo, uma possibilidade, quem sabe algo maior possa ocorrer? Mas o sonho é breve e cruel e eis que vem o som da voz da mãe a procurar por Hatice que foi pegar água para abastecer a casa e demorou um tempo a mais do que o previsto. E então a mágica do vento se desfaz, o véu da surpresa se esvai e junto com ele o sonho de amor de Sinan. Essa personagem da Hatice só reaparecerá de forma fugidia ao casar com um homem escolhido pelas circunstâncias familiares, apenas para reafirmar que os sentimentos naquela localidade são regidos há milênios pela mesma tradição. Não seria essa fábula efêmera dentro do filme um elemento simbólico que Nuri Bilge Ceylan nos oferta para refletirmos sobre a sociedade e o seu contexto? Nessa expressiva sequência, o cinema de Ceylan resplandece, se expande e nos assusta tanto pela beleza quanto pela mensagem que carrega: é a leveza da mise-en-scène a nos dizer algo severo e isso é encantador. 

"A árvore dos frutos selvagens" está a dialogar a todo tempo em como um indivíduo está no mundo, no conflito permanente entre indivíduo e sociedade; indivíduo e a instituição família. Quais seriam nossos limites em relação a um e a outro? O que Nuri Bilge Ceylan está a desenhar é como a nossa vida é traçada a partir dessas confrontações ou nossa vida nada mais é do que a constatação que ela acontece no terreno das dissenções. Talvez essa seja a maior premissa desse diretor, a de estabelecer como vivemos a partir dos conflitos e das desavenças, nos constituímos nesse meio. Reparemos como os próprios colegas de geração se relacionam entre si? Impera sempre as contendas e as brincadeiras humilhantes, uma eterna disputa de egos e solidões. 

"A árvore dos frutos selvagens" é sobre isso: as brigas do indivíduo contra as instituições que estão postas socialmente, a família, os amigos, os empregos e a religião. E o artista, o que faz? Ele está no limbo social, é permanentemente deslocado, não é aceito por ser crítico, revoltado com o mundo tal como é e assim vive a cavar a própria cova. É um inferno permanente. Logo após uma briga com um colega de infância, Sinan abre um armário, e apesar de rápida, a cena é simbólica: a imagem dele reflete em um pequeno espelho e ao lado vemos colados recortes de escritores, um deles é o poeta, ensaísta e dramaturgo alemão Bertold Brecht. Ceylan, mais uma vez abre o confronto entre o que desejamos ser e o que podemos ser no mundo. É algo singelo, pouquíssimos segundos, ainda mais em um filme de 3 horas de duração, mas o segredo às vezes está nos detalhes. É o vento, as fotos, um livro velho ou quaisquer outros pequenos sinais, mas está ali para que prestemos atenção. O cerne do cinema de alguns diretores muitas vezes está no implícito e no fugidio. Piscou, perdeu. 


É bastante interessante analisar o filme sob o ponto de vista das tradições, pois apesar da força que elas tem, já se pressente que elas já perderam muito desse peso, de quanto mais as cidades crescem mais elas vão se enfraquecendo. Tanto que a grande dúvida em "A árvore dos frutos selvagens" está em saber se Sinan segue a carreira de professor do pai ou consegue se tornar escritor, o seu grande sonho de vida. Sim, depois de muita discussão haverá um reencontro e uma reconciliação dessas vidas, afinal a família é a instituição mais consistente, quase sempre com raízes fortes nos indivíduos, mesmo que seu pai seja um viciado em jogo e acumule uma dívida grande e crescente. 

São muitas camadas que Ceylan vai acumulando nas 3 horas de filme, praticamente focado no desenvolvimento do personagem de Sinan. Nas suas deambulações, o jovem encontra um escritor consagrado em uma livraria, tem com ele uma longa e tensa conversa sobre a carreira de escritor. Ao fundo, como um contraponto interessante, vemos grandes posters nas paredes de consagrados escritores como Gabriel Garcia Marques, Franz Kafka e Virginia Woolf. Ser escritor não é só ser uma coisa ou tão somente escrever e publicar, é uma carreira complexa e para poucos, imersa em vaidades, há um mundo editorial para ser escalado degrau a degrau e apenas poucos chegam lá. Entretanto, circular pela cidade é encontrar os mais diversos personagens, como líderes religiosos ou pessoas aleatórias pelas ruas e essa gama de situações alimentam as múltiplas camadas do filme. Ceylan vai com a câmera na mão a subir e descer montanhas, caminhando por vielas e matos, inserindo essas paisagens como personagens do seu filme. Porém, o que Ceylan quer mesmo é decifrar Sinan, tentar captar a complexidade do pensar e do comportamento perante a um mundo que se coloca como um árduo adversário a ser batido. O que Ceylan trabalha é esse penoso processo de amadurecimento de Sinan, a luta para ser escritor, apesar da forçada carreira de professor que a sociedade o obriga seguir e ter que encarar o serviço militar obrigatório.          

"Não há nada para entender, é basicamente uma revolta contra o absurdo da vida". É com essa frase que Sinan em certa altura do filme define o pai. Entender o pai é o exercício maior de se captar o segredo das árvores selvagens, é entender o quanto todos somos solitários, desajustados e deformados. Abrir mão dos luxos da cidade e optar viver no campo, entre animais e plantas é uma forma oportuna de esculpir o tempo, como o pai diz em uma referência aberta ao mestre russo Andrei Tarkovski. É notória a ideia de romance de formação embutida no filme, com a constatação de que as gerações recentes devem superar as do passado e o livro de Sinan é a maior prova disso. Entretanto, ainda sim, precisamos correr atrás dos sonhos, não deixá-los enferrujar, se estilhaçarem ao léu ou ficarem gastos pelo implacável tempo. E Ceylan guarda para Sinan o degustar do fruto selvagem, sonhar o sonho do pai de cavar até encontrar a água no fundo do poço, justamente no momento em que o pai desiste da empreitada. Entender os nossos é o primeiro passo para olharmos no espelho e vermos algo de identificável e valoroso, de que valha realmente a pena lutar.                                                                                        

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere