Consciência a fórceps
Quem acompanha o trabalho de Cristiano Burlan, em especial o de documentário, sabe o quanto a vida dele foi marcada pela violência e que o seu cinema se relaciona muito com esse tema. Em "A mãe" isso não é diferente. Burlan oferece uma pesada e dura reflexão sobre a violência policial na periferia. Mesmo que o diretor fuja à tentação acertadamente de filmar um panfleto sobre o tema, não há dúvidas de que estamos frente a frente com um poderoso libelo periférico contra a violência do Estado por meio das forças policiais, que sistematicamente vem matando a juventude das periferias brasileiras.
"A mãe" conta a história de Maria, mais uma mãe periférica a ter que lutar por justiça no Brasil. Apesar de ser forte, o filme de Burlan se faz muito necessário por reafirmar a dor e a luta dessa personagem, que infelizmente é mais comum do que podemos supor. O título genérico é proposital, por registrar que ela é mais uma a constatar o destino trágico de seu filho. O título até poderia ser mais específico e chamar-se Maria, mas Burlan optou por mostrar que Maria apesar de ter uma história individual faz parte de uma história coletiva. Ao final, Maria vai ser mais uma entre tantas outras histórias semelhantes a sua.
Assistindo ao filme, a todo instante fiquei me perguntando se poderia ter outra atriz a construir uma personagem tão verídica quanto Marcélia Cartaxo, essa que já fez papéis memoráveis no cinema brasileiro, de Macabéa a essa guerreira Maria? Podemos dizer que ela é uma atriz portentosa, amadurecida, afirmativa, lutadora, com a cara do povo desse país mestiço, vinda dos rincões nordestinos como tantos outros que moram e ajudaram a por de pé com a sua labuta a São Paulo que conhecemos hoje.
"A mãe" é sobre essa dignidade de quem tem os mesmos direitos do que qualquer cidadão da cidade. Cena a cena, Marcélia vai se agigantando e tomando o filme para si. Maria é dessas mulheres pequenas na estatura e com um caráter que não lhe cabe no corpo. Enfrenta policiais civis, militares e traficantes com a mesma coragem de quem ama sua única fortuna, Valdo (Dustin Farias), seu filho adolescente que da noite para o dia desapareceu. Há de observar como Burlan arquiteta cada personagem do filme. No início, o diretor foca tanto na vida de Maria quanto na do filho, um estudante não muito aplicado, mas que se mostra um rapper talentoso, com rimas provocativas ao Estado e críticas à realidade que vive no cotidiano da periferia. Valdo é um jovem como tantos, amigo da quebrada, orgulhoso e respeitoso do esforço da mãe por ralar como camelô para sustenta-lo.
Burlan filma muitas cenas à noite e a fotografia muito retrata esse clima soturno e perigoso para quem vive numa periferia pobre. A noite vem a calhar nesse enredo, diz muito sobre o que pode e o que não pode se ver das entranhas periféricas. Mais do que um simbolismo, esse ambiente mostra a vida como ela é, com a promessa de invisibilidade classista que tão bem casa com essa realidade muitas vezes obscura. As luzes que vemos são as da polícia, quase sempre como sinônimo de mais violência e Burlan registra muito dessa luz, que na maioria das vezes surge de maneira indireta na cena, apenas com suas cores azuis e vermelhas a piscar trazendo um sinal de ameaça no ar. Fica muito evidente o quanto as autoridades policiais são registradas como inimigas de quem mora na periferia. Todos os personagens policiais demonstram ou indiferença ou violência, não só nas ações mas às vezes em tom ameaçador, como forças de insegurança, bem diferentes do que deveriam implementar. Há essa visão construída por fatos do quanto há uma política deliberada voltada para o extermínio dos jovens das periferias. Infelizmente, o que assistimos em "A mãe" reflete essa realidade cruel tão comum nas periferias de todo o Brasil.
Sabemos que esse tema da violência é por demais dilacerante na história de vida de Cristiano Burlan. Se por um lado o tema é dolorido para ele, por outro, fica evidente a sua autoridade para falar sobre ele de frente e com a frieza necessária. Os fatos são retratados de maneira incontestável, afinal Burlan está a narrar uma história corriqueira do ambiente periférico. Se os acontecimentos podem parecer estranhos para quem não vive aquele inferno diário imposto pelo poder público, não o é para quem sabe como tudo ocorre no cotidiano das nossas periferias urbanas.
A personagem Maria a principio pode ser vista como uma alienada que sai cedo para trabalhar e volta tarde da noite para casa, sempre exausta e sem muito tempo para refletir sobre a sua própria vida. Por isso, o que vemos em "A mãe" é por demais significativo do ponto de vista político. O peso e a crueldade da realidade acaba por lançar Maria para a conscientização social e para a organização política. Não à toa, Maria termina por abraçar a luta e as bandeiras do Movimento Independente Mães de Maio, que lutam pelo fim do genocídio dos jovens periféricos, em sua maioria composta por meninos pretos. É como se a consciência de Maria, e de tantas outras, fosse extraída à fórceps pela necessidade e pela perda radical que sofreram na própria carne.
É o cinema contando histórias fundamentais de quem está sofrendo com o extermínio deliberado de um Estado que assassina suas crias. É o cinema tomando partido e esclarecendo as lutas que estão em curso na sociedade. É o cinema abraçando os invisibilizados pelo Estado e não se calando perante o absurdo da violência organizada e assassina do Estado. É o cinema social e político que sabe o quanto que a dramaturgia precisa ser contundente e se aproximar da realidade social, sem medo de denunciar os absurdos, cada vez mais naturalizados, de que a periferia é o local da bandidagem, e que muitas vezes, os bandidos estão de fardas decidindo quem vive e morre nesse território.
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