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O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV (2022) Dir. Sergei Loznitsa



Loznitsa: uma aula de cinema documental a partir de imagens de arquivo 

Texto de Marco Fialho 

"O julgamento dos nazistas de Kiev" é um documentário inteiramente estruturado por imagens de arquivo. Tudo poderia ser extremamente maçante, porque não há nada mais chato do que vermos o tempo real em um filme. Esse retrato rigorosamente fiel, afinal tudo ali é real, pois trata-se de um julgamento histórico dos mais importantes e essa é a armadilha que o experiente diretor Sergei Loznitsa precisa escapar. Pode-se dizer que o grande mérito do filme está em como Loznitsa equalizou o tempo de cada depoimento, a ponto de criar uma narrativa coerente que prendesse o interesse do espectador em um longo processo jurídico. Além disso, o diretor consegue organizar o filme de uma maneira que ao final parece que estamos acompanhando um thriler de suspense. 

Inicialmente, tudo parece que vai ficar arrastado e repetitivo, com vários oficiais nazistas apenas cumprindo um protocolo de respostas prontas. Porém, logo Loznitsa vai manejando o tempo dos depoimentos, vai nos envolvendo em cada novo relato de massacre e extermínio perpetrado pelos nazistas. A emoção vai ficando lentamente à flor da pele, afinal cada novo depoimento vai nos arremessando para dentro do horror das práticas nazistas com as populações. O que seria uma guerra de um governo de um país contra o outro, logo se transforma no extermínio completo do outro, do diferente, daquele que não é nazista ou fascista. Loznitsa deixa algo muito claro no subterrâneo de seu documentário: a guerra contra o nazismo foi uma guerra sobre a existência ou sobrevivência da humanidade frente a uma ideologia que desejava aniquilar a alteridade, um evidente desvio de caráter.

Loznitsa trata esse imenso material de arquivo como se fosse todo filmado por ele, se apropria dele de uma maneira pessoal e se assim não o fosse talvez não conseguisse extrair dele uma edição tão perfeita. De repente, nos desligamos, e parece que estamos assistindo a filme de ficção, acompanhamos com uma certa dose de torcida contra a frieza de cada nazista que se pronuncia. A tensão se instala, porque a cada absurdo pensamos nas famílias destroçadas, das vidas sacrificadas ou marcadas pelo horror do extermínio em massa. Havia um prazer nesse matar, um prazer capaz de nos suscitar ódio, um ódio que vem da fala de cada nazista hipócrita, que em vão tentam dissimular arrependimento. 

O filme inicia com o rol das sentenças a serem julgadas. Depois ouvimos os nazistas tentando justificar suas atrocidades. Depois ouvimos as vítimas que sobreviveram (o ápice do filme), para enfim, chegarmos ao fim do julgamento, com a decisão dos juízes e a posterior condenação e execução dos assassinos confessos. Essa é a estrutura narrativa que Loznitsa decanta cena a cena. Seu filme serve para nos alertar e lembrar o quanto cruel e destrutivo foi a ideologia nazista, que impulsionou e subsidiou atos horrendos à vida e altamente condenáveis. Filmes como este precisam ser realizados para como humanidade não repitamos erros e crimes contra a natureza e a vida.             

Um documentário impressionante, nenhuma ficção consegue alcançar a tensão intrínseca a esse julgamento, moralmente crucial para a humanidade. O material de arquivo do governo soviético é filmado de maneira excepcional. A montagem de Loznitsa impõe não só um ritmo impecável como alonga e acelera as cenas na medida certa. É criada uma expectativa de como será o desfecho desse julgamento, que é inteiramente correspondida pelo diretor. Uma aula de cinema documental com uso integral de imagens de arquivo. Destaque para o emocionante depoimento de uma sobrevivente de um massacre nazista em uma aldeia na Ucrânia. Filme fundamental para a memória social da humanidade.    

             

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