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NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO (2022) Dir. Patrícia Niedermeier e Cavi Borges



''Quem tem alma não tem calma" 
                                            Fernando Pessoa - Extraído do poema "Não sei quantas almas tenho". 

Texto de Marco Fialho

De certa forma, mesmo estando em pleno século XXI, podemos dizer que todo o filme de vampiro é uma homenagem ao amplo universo da cultura fantástica. A história da literatura e do cinema estão repletos desse tema tão sedutor e atrativo. "Não sei quantas almas tenho", dirigido pelo criativo casal Patrícia Niedermeier e Cavi Borges não é diferente ao optar lidar poeticamente com esse mundo dominado pelo imaginário fabular, e que flerta com elementos tão díspares da existência como o erotismo e a morbidez. O mais interessante no filme é como os diretores trabalham o tema de maneira bastante fragmentada, explorando mais a atmosfera misteriosa típica das histórias de vampiro do que o desenvolvimento do enredo em si. E isso é possível notar desde o início, onde as cenas filmadas esparsamente, juntamente com uma rica trilha musical que acentua um tom ameaçador, estão ali para construir uma ideia acerca de como eles aportarão no cinema fantástico.

Outro dado importante, posto desde o início, e que acompanhará o filme até o final, é a relação dos personagens, e porque não dizer do próprio filme, com os elementos químicos, sendo a própria história subdividida por vários desses elementos. Como um filme de vampiros é sempre essencialmente cinematográfico por natureza, não podemos esquecer que essa relação química está inserida lá na origem do cinema, na película onde o filme sempre foi impresso. Película e pele, ambos, estão ali como elementos sensíveis, comuns, sempre desejados. Ambos registram os desejos humanos de se eternizar, uma pelo cinema e outra pelo amor. Essa é a alma que estão a falar os diretores no título, do veículo sombrio por onde o desejo flui e deságua, note-se a presença permanente da água e também do líquido: do vinho, do sangue, do mar e da cachoeira. Ter filmes consagrados citados e circulando na corrente sanguínea de "Não sei quantas almas tenho", apenas salienta o quanto de química há entre as peles do cinema e da mitologia vampiresca.

"Podemos morrer, se apenas amamos"

Um bom filme de vampiros anseia pela disparidades, pelo contraditório, oscila entre a vida e a morte, entre a luz e a escuridão, entre a frieza mórbida e o desejo carnal da eternidade. Por isso, o forte de "Não sei quantas almas tenho" está nas imagens, sempre imprecisas, sempre tateantes a buscar algo, o infindável, o inalcançável, às vezes até sobreposta a outra. O vampiro é antes de tudo uma morte travestida de vida, uma ilusão, um sonho (ou um pesadelo?), um títere ambicioso à mercê de um sistema caduco, já finado, um vestígio histórico mofado por uma falsa ideia de eternidade. O filme explora a ideia de que um vampiro é por natureza uma criatura deslocada no mundo e no tempo. Não esquecer que o vampiro é um ser em crise existencial e cansado de viver sua própria decadência e eternidade. O grande mérito do filme é caminhar ao lado de uma ideia filosófica desse universo decrépito e fantástico, de se mostrar consciente enquanto filme, que está a trabalhar com personagens fictícios, simbolicamente ricos e amplamente  reconhecido pela sociedade, e que por isso mesmo não precisa ser largamente explicado. Todos nós, de alguma forma, sabemos algo sobre filme de vampiros, e os diretores não só se aproveitam como se apropriam desse fato para criar uma história nada convencional, livre do didatismo que sempre circundam esse gênero de filme, e por isso mesmo se aprofundando mais no viés estético do universo do mito vampiresco.

O filme se divide claramente em blocos, muitas vezes estanques, e aposta que o sentido aconteça por uma combinação livre de suas partes. Assim, os diretores constroem a trama com sequências que lembram mosaicos temáticos e temporais que homenageiam não só filmes, mas especialmente a estética que permeia o universo fantástico do vampirismo. Há um diálogo interessante e permanente entre passado e presente. Como todo filme de vampiro que se preza, "Não sei quantas almas tenho" registra imageticamente um rastro histórico e abusa dos cenários antiquados como castelos portugueses e muralhas medievais para se expressar. O mesmo acontece com algumas referências artísticas que gritam na tela, como uma evidente influência do romantismo e da atmosfera sombria do rock gótico, onde a presença da banda brasileira Leela acentua ainda mais essa impressão, com versões de músicas consagradas das bandas inglesas Joy Division e Bauhaus ("Bela Lugosi's Dead"), além de conferir um toque abrasileirado na temática, com cenas decisivas filmadas inclusive em praias cariocas e outras ainda no imponente sítio histórico de São Luís (MA). Só faltou o vampiro, tal como a versão bem-humorada de Sherlock Holmes de Jô Soares, encarar uma feijoada, o que não surpreenderia em nada. 

"Livros e sangue sempre foram meus alimentos"

Ainda no que tange ao estético, o filme se constrói hibridamente em diálogo com múltiplas expressões artísticas, muitas delas díspares, como a videoarte, o filme experimental, o videoclipe, a dança contemporânea, o impressionismo, o expressionismo, o gótico, a estética  romântica, lembrando visualmente os filmes B de Roger Corman e recorrendo às citações ora implícitas ora explícitas de filmes clássicos do gênero como "O sétimo selo" e "A Hora do Lobo", de Bergman; "Madre Joana dos anjos", de  Jerzy Kawalerowicz; além de outras poéticas sobre a imortalidade, como o belíssimo "Asas do Desejo" de Win Wenders. Alguns desses filmes aparecem diretamente numa tela de cinema quando a vampira Nina (Patrícia Niedermeier, mais uma vez em uma interpretação extraordinária e intensa) ataca vítimas-cinéfilas, flagradas em seu exercício mais habitual, que é ver um filme na sala de cinema. Essas brincadeiras metalinguísticas são encantadoras, e bem-humoradas, reafirmam a posição do filme de se dar o direito de dialogar com obras referenciais do cinema ao inserir uma obra dentro da outra obra, como o fez também Woody Allen no seu último filme, "O Festival do Amor" (2021). "Não sei quantas almas tenho" se aproveita do lastro temporal no qual o filme de vampiro transita e lança uma viagem estética entre a influência do literário nos diálogos (e no próprio título, extraído de um poema de Fernando Pessoa) e do próprio terror gótico nas poderosas imagens que propõe, como a inserção na trama da macabra, gótica, surpreendente e estonteante Igreja dos Ossos, em Évora. Há ecos também da estética neon estilizada de "Fome de viver" (1983), de Tony Scott, com David Bowie, obra que também trabalha na mesma sintonia de atualização histórica do velho mito do vampiro e onde a banda de rock "Bauhaus" está igualmente inserida na trilha musical. 

Como já afirmei acima, há, em "Não sei quantas almas tenho", um substrato poético sugado diretamente de uma deliberada elasticidade temporal que a própria trama abarca, mas pouco pouco falei do personagem Nicolau (com Jorge Caetano numa interpretação notavelmente sóbria e elegante), que atravessa épocas históricas, sempre mantendo a postura aristocrática, acomodada e decadente do vampiro sedento por sangue, embora contraditoriamente com horror à morte ou a ter que matar pessoas para viver. Enquanto Nina assume uma incontrolável voracidade selvagem e assassina, se mostrando uma mulher insaciável, Nicolau representa um vampiro que se apraz em consumir um sangue industrializado, frio e engarrafado. Nina quer o sangue em natura, quer suga-lo diretamente de um apetitoso pescoço. Em um primeiro momento, Nina, uma química de profissão, está perdida e anda a esmo pelas ruas, vagando por labirintos ainda sem ter consciência de sua verdadeira alma vampira, mas logo a descobre, e caminha ferozmente rumo à autodestruição. Essa mudança de atitude de Nina, essa transformação no arco da personagem é fundamental para o próprio entendimento de quanto o mito do vampiro precisa ser encarado em diferentes épocas históricas. No mundo de hoje, o aspecto lúdico da lenda se perdeu, pois vivemos a mais desenfreada ambição e devoração das almas da história, onde o sistema econômico suga tudo o que pode de cada ser, que passa a vagar tal como um vampiro, mas dessa vez entupido não de sangue e sim de Rivotril para poder sobreviver a pressão demandada pelo sistema cada vez mais opressor. Os nossos tempos marcariam o fim da lenda do vampiro, pelo menos em sua faceta mais romantizada e glamourosa? "Não sei quantas almas tenho" parece sinalizar para isso, basta pensar no final que o filme propõe.       

Já disse antes que muito desse filme se expressa pela imagem. Ela é inebriante, tão sedutora quanto um vampiro o é quando quer morder um pescoço. Quanto mais a obra vai avançando em seus minutos mais derradeiros, mais ela se aproxima em notabilizar a dualidade das cores. O azul e o vermelho são as cores que os diretores realçam cena a cena e vale ressaltar a beleza que o diretor de fotografia Fabrício Motta consegue imprimir em cada tomada. Mas a fotografia é mais do que simplesmente sustentada pela competência técnica, é também deveras expressiva e discursiva. Ela demarca essa luta entre a personalidade agressiva de Nina com a aristocrática e conservadora de Nicolau. Seria Nicolau uma referência ao alquimista medieval Nicolas Flamel, famoso por buscar o elixir da vida eterna? A química em "Não sei quantas almas tenho" não é definitivamente casual, está inserida nos personagens assim como nos subcapítulos, todos devidamente nomeados por um elemento químico. Os metais e a durabilidade, a mortalidade humana e o anseio pela imortalidade, afinal somos também pura química. A compulsão humana por matar não estaria filosoficamente ligada ao próprio desejo de imortalidade? De ter o controle sobre de quem deve viver e morrer? O romantismo leva ao extremo a ideia de mortalidade e de amor ao viver ambos sem demarcação de fronteiras. O vampiro está situado no seio dessa discussão romântica sobre o que é viver, do quanto o amor pode ser imortal posto que é chama, como já disse Vinícius de Moraes, em um de seus memoráveis sonetos.    

"A vida é estranha, a morte mais ainda"

Há poesia em cada imagem de "Não sei quantas almas eu tenho", um filme anticerebral, que preza mais pela contemplação, uma obra que valoriza o que deve ser vivido, sentido e as cenas mais experimentais, mais arriscadas narrativamente são as que mais vibram, chegando a saltar para fora da tela. Há doses precisas e preciosas de um romantismo que flerta, com a devida moderação, com o brega, pois afinal um vampiro é essencialmente uma aparição brega, deslocada. Nada mais brega do que a ideia de amor eterno quando a vida de todos, sem exceção, terá um fim e o filme consegue trabalhar muito bem com isso, ao brincar com a própria imortalidade vampiresca, e até certo ponto, consegue subvertê-la. O filme mostra o vampiro como representação da ilusão, do apego a uma beleza fugidia e da banalização da morte, do glamour vaidoso a esconder a perversão da morte.  

É muito interessante o quanto "Não sei quantas almas tenho" se utiliza de imagens sobrepostas que reafirmam a ideia dicotômica existente o tempo todo no filme, uma pulsão de vida e morte, de passado e presente, afinal, a imagem de um vampiro é uma imagem pronta a se desvanecer. A imagem sobreposta aqui diz muito sobre o que é essa obra vampiresca. O sobreposto está a demarcar o contraditório existente entre a ideia de amor e eternidade, entre o viver e o morrer, pois essas questões se colocam no indeterminado, nos leva para o entre, para o que está no limbo e no vir a ser, na vida como um laboratório do viver, do experimento da arte e do quanto mais nos descobrimos ignorantes em relação à vida e do quanto nos esforçamos, em vão, para decifrá-la. Devorar para decifrar, diria alguns, mas devorar não é necessariamente assimilar, pode ser tão somente destruir. É nessa corda bamba que o filme transita, que Nina especialmente habita. Pode-se dizer que o filme conscientemente transita no transitório, em um caminho inverso de seus personagens, todos com histórias com início, meio e fim.

Observem o quanto de movimento esse filme trabalha. Mas o movimento, apesar de contínuo, não está em um só lugar. Em alguns momentos ele está nos personagens, em outros no cenário, em outros na câmera, e ainda em outros, em todos eles. O movimento é o que sinaliza um caminho de morte para o vampiro. Nicolau percebe isso em Nina, o movimento. O tempo para o vampiro é estático e eterno, o movimento é a morte. A imortalidade se traduz na permanência e a perdura. O vampiro e sua suposta imortalidade é uma criação artística, um devaneio da literatura fantástica. "Não sei quantas almas tenho" passeia nesse universo rico, farsesco, farto de palavras, imagens e sons, e o faz com uma alma carregada de poesia, como um tributo à literatura e ao cinema, artes poderosas que carregam consigo muito da filosofia romântica. No filme de Cavi Borges e Patrícia Niedermeier, a dobradinha entre arte e vampirismo seduz e acontece, sobretudo porque nele está perpetrada a química entre os elementos que o compõe. 

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