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A esperança do mundo em uma esquina
Texto de Marco Fialho
O ano é 1972. O disco é "O Clube da Esquina". Milton Nascimento, guru e líder de um time fantástico de músicos, compositores, cantores e letristas completava seus 30 anos de idade. Esse disco celebra a maturidade desse homem fora do comum, fora da curva e apresentava uma revelação talentosíssima, o cantor e compositor mineiro Lô Borges. 50 anos depois, Milton faz 80 anos, exatamente no momento em que escrevo esse texto em homenagem a esse ser que ressignificou a minha alma, me fez caminhar pelo mundo inspirado por tudo que a sua voz poderosa podia fazer para desestruturar-me assim que ela é emitida e faz minhas pernas bambearem de emoção. Queria aqui falar também de "O Clube da Esquina nº 2", mas não conseguirei agora, embora esse seja o disco de Milton que mais me forjou como um ser deste mundo. Falar só do disco 1 já é demais, deixarei o segundo para um outro momento.
Há uma magia indecifrável em "O Clube da Esquina", mas há antes de tudo, há ali um sinal de esperança. Desde a primeira faixa somos convidados à aventura por um país imaginário, ou seria o certo dizer imaginado? Em meio à ditadura militar, esses jovens fecundaram um novo país, onde só se viveria a esperança, como se uma utopia fosse não só realmente possível, mas sobretudo vivida. E magia só é magia se ela for algo sentida pela alma. Se ela é viva, ela é portanto vida. E claro, tudo passa por uma ideia de clube, de encontro e essa é a lógica. Se "The Beatles" criaram mundos lisérgicos para podermos suportar a dureza do cotidiano, Milton e seus amigos forjaram algo bem similar, um clube meio mineiro e carioca. Se os gênios de Liverpool pensaram em um Clube da Banda do Sargento Pimenta, aqui tudo foi pensado a partir de uma esquina, lugar perfeito para conversas, bebedeiras e amizades. Uma esquina paralela a superar a noite que o país vivia na ditadura.
Já imaginou um lugar onde poderíamos ser nós por completo, como diz a canção dos irmãos Lô e Marcio Borges, "Tudo que você podia ser", ou quem sabe sermos nada? Essa canção de abertura é um convite à estrada e um mergulho no tudo de improvável que a vida nos serve à mesa. "Tudo que você devia ser, sem medo" ainda insiste a letra. Se Chico representava a resistência dura a conclamar a ida às ruas, o clube de Milton já estava em outro patamar, propunha viver na utopia imaginada e para isso existia o "Cais" (Milton e Ronaldo Bastos), um hino para a fundação de uma nova maneira de viver sob o terror. Cabe aqui citar a letra inteira, pois ela é um testamento, uma filosofia de vida e insere o sonho no viver cotidiano:
Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dáInvento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de encontrar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
O clube aqui é lançado ao mar e inventado sob a medida dos sonhos. A palavra invenção sintetiza a beleza, que se não existe precisa existir, e consequentemente criada. Milton tem um dom inacreditável de absorver em sua música as coisas que trazia na alma, como as missas, as ladeiras, as casas históricas e velhas de Vila Rica. Ou será que tudo isso estaria apenas embutido na sua voz sobrenatural? Se a sua voz parece ser de outro mundo, como ela nos agarra tanto a um lugar tão terreno e nosso. A voz de Milton nos representa em alguma medida, ela carrega a alma profunda, assim como Clementina de Jesus e Elis. São vozes raras, únicas embora totalizantes de um história coletiva e gregária.
Do "Cais" viajamos por um "Trem Azul" (Lô e Ronaldo Bastos), por um vento a compor canções, a inspirar a infinitude à contemplação do azul do céu. O celestial continua a evocar miragens em "Nuvem Cigana" (Lô e Ronaldo Bastos). A poesia de Bastos não insinua, assume a aventura e assume o vento como mola propulsora da vida e convida para o bailar:
"O meu nome é nuvem.Ventania, flor de vento.
Eu vivo em qualquer parte do seu coração.
Se você deixar o coração bater sem medo."
Apesar dos letristas não serem os mesmos, afinal temos Marcio Borges e Ronaldo Bastos dividindo a maioria das letras do "Clube da Esquina 1" junto com Fernando Brant, as semelhanças são assustadoras. Palavras como azul, estrada, nuvem e vento aparecem como um passe de mágica nas canções, que fluem e formam um universo comum. Em "Um girassol da cor de seu cabelo" (Lô e Marcio Borges) a alegria primaveril sugere uma expectativa de uma tranquila aventura a dois:
"Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor do seu vestidoVento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo?"
O mundo real, com suas agruras e tal, aparece também nesse contexto onde o que impera sempre é o desejo de um mundo diferente e feliz. Entretanto, a realidade surge invertida, em forma de sonho, como na bela e mineiríssima "San Vicente" (Milton e Fernando Brant), com seus sinos e avisos de procissão. O sonho anuncia a tragédia cotidiana e o perigo de morte no ar:
"Coração americano
Acordei de um sonho estranhoUm gosto, vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte
Coração americano
Um sabor de vidro e corte."
Ainda mantendo a ideia de sonho, mas agora se misturando com a realidade, a canção tão referenciada e emblemática, "Clube da esquina nº 2" (Milton, Lô e Marcio Borges), narra um presente com um tom nostálgico, e faz brotar em nós uma sensação estranha, de que ela sempre está a falar tanto do presente quanto do passado. A ausência da letra no disco aumenta ainda mais a atmosfera de sonho que ela evoca. A frase mais paradigmática e que por si só expressa um manifesto ("Por que se chamavam homens / Também se chamavam sonhos / E sonhos não envelhecem") surge como lapidar para esse coletivo inspirador. Nessa canção, fala-se tanto da dureza da vida quanto dos sonhos, mesmo que algo suave e banal venha emergir do nada e colorir tudo "E lá se vai mais um dia". Sim, a esperança há sempre de existir e imperar no Clube da esquina! A certeza de que o mundo só pode caminhar para a harmonia, para o momento de paz entre todos, simplesmente porque assim deve ser a vida, para todos, sem exceção ou para todos que cultivam o amor no coração e nas relações interpessoais. A cada canção a crença nas ideias são sublinhadas e reafirmadas e não seria diferente nessa que é a música que sintetiza o projeto: "Por que se chamava moço / Também se chamava estrada / Viagem de ventania."
E seria casual a música seguinte ser a belíssima e libertária "Janela lateral" (Lô Borges e Fernando Brant)? Creio que não. Uma música tomada pela poesia cinematográfica da letra: Da janela lateral do quarto de dormir / Vejo uma igreja, um sinal de glória / Vejo um muro branco e um voo pássaro / Vejo uma grade, um velho sinal." Como não literalmente voar com esse pássaro sobre essa paisagem? Instigar com esse algo mais que está sugerido a nossa frente pela paisagem e aceitar o convite do mundo para fazermos parte verdadeiramente dele, não só como espectadores, mas como seres integrados ao que sorrir a nossa volta. Conhecer a vida em sua inteireza, com suas agruras e belezas.
Embora fale insistentemente nas letras sugestivas desse disco incrível, ainda mais que estou a enfatizar ideias largamente transpiradas em cada linha escrita por esses ótimos poetas mineiros, não esqueço com isso da parte musical impecável dessa obra. Vale mencionar que os arranjos são assinados pelos mestres Eumir Deodato e Wagner Tiso, ambos tecladistas importantíssimos da nossa música. "O Clube da Esquina" não foi só um grupo de compositores e cantores, antes foi o encontro de músicos impecáveis e criativos como Robertinho Silva (bateria), Toninho Horta (guitarra), Luiz Alves (baixo), Paulinho Braga (percussão), Som Imaginário, Nelson Ângelo, Beto Guedes, Tavito, entre tantos outros. Um som que misturava psicodelia, The Beatles, música gregoriana, música folk, latino-americana, samba, dentre outras. É um mix interessante, audacioso e extremamente rico em harmonia.
Quero fechar esse texto comentando a canção "Nada será como antes" (Milton e Ronaldo Bastos), porque ela retoma o tema central do disco, o da esperança no que virá: "Num domingo qualquer, qualquer hora / Ventania em qualquer direção / Sei que nada será como antes, amanhã." Ouvir cada canção desse disco é como caminhar sobre as nuvens, é ter certeza de que um outro mundo é possível, já que cada nota e palavra desse disco assim o é. Ouvir a voz de Milton Nascimento ecoar é ratificar o infinito, o quanto ilimitado é o poder de transformação e de ação de cada um de nós. Ele corrobora que o mundo pode ser diferente. E é assim exatamente como eu me sinto cada vez que esse disco transita pelo meu corpo.
Perfeita descrição
ResponderExcluirMuito obrigado por comentar!
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