"Un Couple": um documentário sobre uma voz, a voz de Sophia.
"Casal: Sophia e Tolstói" poderia apenas ser mais um filme de ficção, mas não o é, justamente porque seu diretor é Frederick Wiseman, um dos maiores documentaristas vivos, apesar dos seus 92 anos, continua na ativa mantendo uma profusa e profícua produção. Mas será que o filme está assim tão afastado do documentário? Me parece que Wiseman toma esse projeto como uma espécie de experimento documental, basta pensar que o diário de Sophia torna-se a única fonte documental utilizada por ele, mas não é só isso, a maneira como ele trabalha esse material também muito diz sobre o filme. Esse é sobretudo um filme de princípios, tanto pelo tema da opressão da mulher que ele enfoca quanto no rígido formato cinematográfico escolhido.
Apesar de ter volteado o que eu quero dizer, verdadeiramente não o disse. "Casal: Sophia e Tolstói" é um documentário sobre a voz, a voz de Sophia. Cada palavra está colocada de tal forma que não há espaço para se duvidar que aquela não é a voz de Sophia (interpretada sem maiores floreios por uma sóbria Nathalie Boutefeu), as palavras que saltam das cartas dela são envoltas de beleza dessa existência, regado de uma força poética irrefreável pela grandeza que emerge das imagens de um filme-monólogo, de uma mulher a nos confessar a dureza de sua vida, da entrega ao marido que era simplesmente um dos ícones da literatura mundial. Wiseman reduz aqui Tolstói apenas a um homem em seu cotidiano, nos lembra que por trás do ícone literário existia uma figura humana, o que o fragiliza sobremaneira, pois afinal isso revela que ele apesar de genial era um homem do final do século XIX.
Tem um fato político intrínseco e importante na própria narrativa de Wiseman, quando em várias cenas ele quebra a quarta parede e coloca Sophia a direcionar cada palavra ao público, como se quisesse assim falar diretamente às mulheres, pois afinal, hoje sabemos que por mais avanços que tivemos ainda há muitas mulheres também oprimidas pelos seus maridos, e no caso de Sophia, uma dedicação total, na casa e na revisão dos textos de Tolstói, o que não é nada pouco. Wiseman nos brinda com uma bela homenagem a essa mulher, restaurando sua voz, seu pensamento e garra de viver. Adotar esse ponto de vista como único é soberbo, é realçar a potência da personagem e isso é muito. Desapagar a imagem de Sophia é um dos pontos altos desse "Casal: Sophia e Tolstói". No título original, "Un couple" há uma postura clara de Wiseman em amarrar o trabalho dessa mulher ao marido, não cita Tolstói como no título brasileiro, mas deixa evidente o quanto o tema do casal é o principal e que a presença solitária de Sophia em cena traduz muito do sentimento que há nos diários dela.
Um dos elementos mais potentes da proposta dramatúrgica de Wiseman está em como ele pensa a camada sonora do filme, que extrai da narrativa qualquer nuance de leitura melodramática da história. Prefere ofertar desde o primeiro plano ao espectador o som direto vindo da própria natureza, como se assim nos deixasse resgatar a atmosfera da vida no interior, habitat em que viveu Sophia com Tolstói. É curioso como Wiseman, conhecido pelo documentário observacional, arrisca-se aqui numa ficção experimental (ou seria um documentário experimental? Na verdade, pouco isso importa), onde troca a câmera estática da observação por uma espécie de reconstituição textual a documentar sobretudo as palavras.
Nota-se que se o som do filme emerge de uma aparente pasmaceira da natureza, enquanto os fatos narrados de maneira monocórdica se encaixam como luva na proposta wisemaniana de experimentar os limites entre palavra e imagem. Tudo pode até soar como um artifício teatral, mas entendo que isso é simplificar a ousadia estética de Wiseman quando procuramos entender "Un Couple" mais amplamente na filmografia do diretor. Wiseman deve ter ficado impressionando e encantado com o diário de Sophia e pensou em como filmá-lo sem agredir sobremaneira a sua forma de pensar um documentário. Não casualmente, "Un Couple" ambiciona documentar a palavra e aqui não é a do ícone Tolstói, mas sim a de sua esposa, que se mostra não só malabarista da vida como também talentosa com as palavras. Tolstói aqui adentra tão somente pela voz dela, de mais, resta a ele o único momento como coadjuvante na vida, e podemos dizer que foi Wiseman o responsável por isso, por ressignificar a vida comum de Leon e Sophia.
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