Pular para o conteúdo principal

O LIVRO DOS PRAZERES (2021) Direção Marcela Lordy


Um precioso documento sobre a alma feminina

Texto de Marco Fialho

Os filmes nos seduzem por motivos diferentes. Cada um possui um imã específico. No caso de "O Livro dos Prazeres", dirigido por Marcela Lordy, o que nos faz ficar grudado na tela é a presença da atriz Simone Spoladore. Quanto mistério há no olhar dessa atriz extraordinária. Uma pena o Brasil não reconhecer o gigantismo de seu trabalho e a prova disso está nas pouquíssimas salas disponíveis para assistir a um filme protagonizado por Spoladore. E olha que "O Livro dos Prazeres" é uma adaptação da obra "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres" de Clarice Lispector, uma das escritoras mais prestigiadas da literatura brasileira, o que já devia garantir uma grande distribuição ao filme. 

Mas não é à toa que Simone Spoladore brilha tanto em "O Livro dos Prazeres", pois esse trabalho é um típico caso de filme de personagem que depende muito do desempenho da protagonista para que ele funcione e o grande acerto da diretora Marcela Lordy está na escolha da atriz para a personagem Lóri. Deve-se relevar logo de cara a importância desse filme para se pensar o papel das mulheres na sociedade brasileira contemporânea e tudo isso é potencializado pelo fato de "O Livro dos Prazeres" ser um filme dirigido por uma diretora, baseado em um romance de uma escritora e protagonizado por uma personagem mulher, forte e decidida. Essa combinação o torna um documento importante sobre o ponto de vista do feminino, visto que Clarice Lispector é muito reconhecida por retratar os sentimentos das mulheres e de ser crítica à opressão patriarcal.


E é disso que o filme trata, de uma mulher tentando se esquivar de um mundo que está a cerceá-la. Lóri é essa mulher, uma professora, que como todos nós está em busca de se encontrar no mundo e o faz de uma maneira sincera e verdadeira, não aceitando as amarras que a sociedade a impõe sistematicamente. A câmera de Lordy cola nessa mulher, se torna cúmplice de cada ação, fica à mercê dela, a persegue para traduzir a angústia de se viver oprimida. Lordy trabalha com a ideia de que a repressão está não só arraigada quanto causa sufocamentos. A atitude de Lóri é mudar-se do interior para um apartamento herdado na Praia de Copacabana depois da morte da mãe, com o intuito de mudar radicalmente de vida, agora, sem as amarras de antes, de uma família a vigiar cada passo dado. O filme é sobre esse sentimento de sentir-se livre, de uma necessidade de um movimento vital, embora ainda tenha de conviver com os fantasmas já introjetados pelo patriarcado.

Em seu cotidiano, Lóri dá aulas a crianças bem pequenas e se esforça em fazê-las refletir sobre a vida, fato que incomoda muito a direção da escola. Ela sabe o poder e o peso que a educação tem sobre o futuro de cada um e quer mudar isso. Deveríamos mesmo começar a pensar sobre a nossa existência desde tenra idade ou deveríamos deixar tudo como sempre foi? O filme nos interroga sobre essa complexa questão. Simone Spoladore cria uma Lóri verdadeira, humana e repleta de conflito sobre a nossa natureza. Logo de início, vemos Lóri a enfileirar amantes em sua casa, inclusive mulheres, em uma onda de franca liberação, cujo o desfrutar sexual aponta para um algo além, de cunho existencial. Quando surge Ulisses, um professor de filosofia egocêntrico e pernóstico em sua vida, ela reluta em aceitá-lo, o que vai se demonstrando coerente com tudo que ela estava a buscar desde o início da obra de desprezar às amarras opressoras do casamento tradicional. Lóri tem consciência de tudo que ele representa, mas mesmo assim vai lentamente cedendo a essa relação e é nesse momento em que o filme mais rateia, pois o aceite dela por um relacionamento assentado em um visível machismo estrutural se mostra por demais contraditório. E esse fato complica bastante o final da obra, retirando dela muito da potência prometida desde o início, onde a provocação, a rebeldia e a transgressão da protagonista apontavam para um caminho libertário. Mas as incertezas de Lóri e o seu apego final a um amor convencional está em Clarice. Entretanto, talvez Lordy pudesse atualizar o romance, pois essa personagem hoje agiria de outra maneira, da mesma forma que a diretora diminui o espaço que Ulisses tinha no livro de Clarice e privilegia muito mais a relação de Lóri com ela mesma e com o mundo.


Entretanto, esse não é o único problema ao meu ver. Há ainda uma dificuldade da diretora Marcela Lordy de se desvencilhar de uma nuvem literária que fica permanentemente a rondar o filme. Ao nomear capítulos, a diretora acrescenta algo literário e inócuo na obra cinematográfica, e ainda nos deixa a pensar sobre algo que já está implícito no próprio filme. Em alguns momentos há um excesso de literatices que poderia ser suprimido sem que houvesse a menor perda para o conjunto de "O Livro dos Prazeres". Os momentos em que Lordy consegue investir em uma narrativa predominantemente cinematográfica, o filme cresce, como na parte do livro de memórias da mãe que se apresenta como verdadeiramente poético e habilmente inserido na trama e que não está presente no livro de Clarice Lispector. 

Os percalços aqui assinalados não chegam a derrubar o filme, apenas retiram dele uma excelência que estava ali bem próximo dele. Ao final, a grande impressão que fica é que a presença de Simone Spoladore funciona como uma luz que flutua suave e belamente pelo filme, e que a sua interpretação tão vigorosa, nos invade a alma de tal forma que não conseguimos deixar de observá-la com renovada atenção até o final da projeção. Ficamos tão tomados por suas dúvidas e ações que saímos do cinema com o desejo de levarmos Lóri para o aconchego do nosso lar e dividir com ela uma conversa sobre esse mundo injusto, cruel e acachapante.  



                                            

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...