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MÚSICAS QUE HABITAM EM MIM - Nº 7 - Belchior (Como o diabo gosta)



Link para ouvir o LP Alucinação (1976): 

https://youtu.be/eZLnswWwZvc


Uma juventude como o diabo gosta 

Texto de Marco Fialho

A Marcelo Biar (in memoriam) e Nieta

Infelizmente, Belchior chegou tarde em minha vida. Engraçado como até os meados dos anos 1990 eu nunca ter me sensibilizado verdadeiramente por ele. Foi um casal de amigos de longa data e repleto de histórias em comum, Marcelo Biar e Nieta Carvalho, que realmente me apresentaram a Belchior, quando depois de alguma insistência me convenceram a parar e ouvir. Era um CD de um show chamado "Um concerto bárbaro: acústico ao vivo" (1995). Basicamente, o CD continha interpretações livres, ao violão, de alguns de seus sucessos. Ali eu comecei um interesse tardio nesse que se tornou para mim uma referência não só dentro da música, mas como um mestre do pensamento libertário que tanto me apraz e vem permeando a minha existência. Evidente que depois dessa primeira experiência vulcânica vieram tantas outras, e até hoje, ouvir Belchior é um ato permanente de renovação do espírito. 

Marcelo e Nieta foram amigos que encontrei na Faculdade de História, lá em meados dos anos 1980 e que desde o início firmaram uma linda e duradoura amizade comigo. Marcelo morava perto de mim, no Grajaú, já Nieta em Botafogo, bem próximo à faculdade. Nessa época, conheci minha esposa enquanto os meus dois amigos se casaram e foram morar no Grajaú. Claro, que eu e Carmela viramos figurinhas fáceis naquele apartamento situado naquele bucólico bairro. Os anos que se seguiram sempre foram cercados por muita música, filmes e muitos papos regados à cerveja, nesse caso, eu e Marcelo bebendo todas. No Carnaval nos reuníamos para assistir e discutir um pacote de 15 filmes que pegávamos na locadora de vídeo para passar a folia juntos. Tempos realmente saudosos, vibrantes e alegres. A maior parte dos filmes escolhíamos em consenso e a parte não consensual cabia a cada um assumir suas escolhas até completar os quinze filmes do pacote. Mas as músicas também figuravam como centrais em nossos encontros, ouvíamos um pouco de tudo, embora Chico Buarque, Milton Nascimento e Alceu Valença predominassem. Lembro que Nieta gostava muito de Supertramp e Cat Stevens, que também apareciam sonoramente no ambiente de nossas conversas. E foi numa dessas reuniões que Belchior apareceu em nossas vidas.       

Quando você mergulha em Belchior, é inevitável chegar no disco "Alucinação" (1976), e mais inevitável ainda alça-lo a um patamar automaticamente bíblico. É um disco todo calcado na rebeldia jovem, na certeza de que o mundo tal como ele está, e é, já não nos cabe mais. Não que uma ou duas músicas diriam isso, não, são exatamente todas a proferir em alto e bom som que precisamos urgente de um novo modo de viver. Cada nova música vai impondo um massacre tal na alma que é difícil não se empolgar e crer em cada poema ouvido em forma de canção. "Alucinação" é precisamente isso, um poema poderoso, eloquente como poucas vezes pude ouvir na vida. O meu delay imperdoável em relação a Belchior é de quase vinte anos, dezoito anos para ser exato, tempo de se formar mais uma nova juventude. Entretanto, cabe a reflexão de que o meu atraso foi de dezoito anos, o do Brasil foi bem maior, pois Belchior realmente começa a ser redescoberto pelo Brasil e tratado como grande nome apenas a partir da inusitada conjuntura de sua morte, um pouco antes de 2017, isto é, mais ou menos dezoito anos depois que eu passei a dar a devida atenção a ele.  

Claro que a coerência entre obra e vida que Belchior sempre proclamou, se evidenciou mais ainda quando ele colocou em prática os valores que sempre defendeu nas canções. Não se curvar à máquina de moer do sistema, que só faz o artista acumular cifras até virar um típico burguês, com posses, com uma vida careta de conforto e mídia sempre disponível a faturar perante um novo recomeço de carreira, para fazer um show onde uma nova geração conheça a sua obra e a mais antiga reafirme e renove a velha paixão. Sempre achei que Belchior não sentaria nessa mesa confortável para poder comer um belo filé e garantir a velhice na sombra e água fresca. Era uma intuição minha e a cada nova notícia eu via como ele se revelava ser verdadeiramente apenas um rapaz latino-americano, que não se dobraria a empresários, família ou sistema para tornar-se um senhor comportado, que jamais deixaria os sonhos de juventude de lado, afinal, o próprio Belchior já proferiu a hoje famosa sentença: "viver é melhor que sonhar". Sim, o que Belchior faz é provar que "o passado é uma roupa que não lhe serve mais", como se o assum preto (blackbird) lhe soprasse ao pé do ouvido: "o passado nunca mais."  

Viver a vida é também viver os fracassos dela. Não um fracasso individual, mas fazer da sua vida expressão do fracasso social. Aquela sociedade que tanto ele denunciou continuava ali à espreita e a massacrar a todos nós. Belchior morreu antes da Era Bolsonarista, talvez até por pressenti-la, ou porque ele sabia que a transformação do sonho em pesadelo era algo mais previsível do que o rio desaguar no mar. Para mim, Belchior foi uma forma de interrogação acerca do que precisamos fazer para mostrar ao coletivo como a opressão social é um elemento presente e ainda nos envolve, abocanhando nossos sonhos e dizendo que ali na esquina ou em outro momento tudo vai mudar. Belchior sabia que não mudaria. Mandou bens, carreira, família, empresários, tudo para o alto e foi morar no espaço. A maioria diz que tudo que ele fez foi absurdo, insano, mas o que Belchior fez foi justamente mostrar e por a nu a insanidade de como o sistema se estabelece, como um jogo, mas o faz com o nosso consentimento ou covardia, na maioria das vezes pelos dois. 

Mais do que falar aqui de uma época de minha vida, Belchior me traz algo muito mais substantivo e perene, que é o da necessidade de vivermos sob parâmetros que nos coloque na primazia de nossas vidas, com os remos à mão e o não estampado no rosto. Belchior nos faz pensar em não sermos aquela peça que faz girar a roda da fortuna ilusória do capitalismo. Como diz a breve e pontual canção "Como o diabo gosta" "... a única forma que pode ser norma, é nenhuma regra ter, é nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer, nunca reverenciar." Esses versos tem uma potência, um ensinamento de não se deixar aprisionar, de desobedecer perante ao não justo. Ao ouvir Belchior sempre fico com uma ideia fixa na cabeça. Porque aceitamos viver baseados apenas por ideias que não nos representam e apenas nos aviltam como seres. Hoje é evidente que esse pensamento beira o utópico, porém a própria ideia de que a vida não pode ser de outra maneira é a mais opressora de todas. Creio que tinha muito em Belchior das ideias de Henry Thoreau, escritor e pensador que atacou o avanço em sua época da civilização industrial e urbana, exilou-se em uma floresta para poder viver apenas com a força de seu trabalho e de acordo com as suas necessidades, fazendo de sua vida um potente ato político.

Curiosamente, Belchior está na moda. Todos cantam os seus versos como prova de resistência aos descaminhos que trilhamos nos últimos anos, para denunciar os becos sombrios e fétidos a que chegamos. Uns dizem reiteradamente "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro", trecho já célebre da canção "Sujeito de sorte", que lembra a ideia de renascimento que deve estar presente sempre em nossas vidas. Sim, basta de morrer, precisamos viver e viver para Belchior era coisa séria, era a razão e a motivação maior da existência, sem amarras e opressão. Há em Belchior um libertarismo essencial, uma necessidade de evidenciar "que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa". Esse mundanismo valoriza a mudança no cotidiano, "que apesar de termos feito tudo o que fizemos. Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais". E poderíamos completar com os versos de "Apenas um rapaz latino-americano": "Mas não se preocupe meu amigo com os horrores que eu lhe digo. Isso é apenas uma canção. A vida é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior". O mundo criado pelas canções de Belchior é o utópico, o de um lugar inexistente a ser ainda criado, que precisa ser para além da canção, que necessita se consumar na própria vida e deixar de ser uma quimera.

Entretanto, há um dado em Belchior que extrapolava o próprio agir. Quando penso na canção "A palo seco" me remeto de imediato a "Cão Andaluz" (1929), filme de Luiz Buñuel. Essa obra surrealista do diretor espanhol se notabilizou por uma cena em que uma navalha corta o olho de uma mulher, como se Buñuel estivesse a nos dizer que precisamos olhar o mundo com novos olhos, como se buscasse um novo olho por trás do cortado. Belchior na sua canção diz que "eu quero que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês." Reparem como há uma similitude nessas duas ideias artísticas. O ato violento, em ambos os casos, é incrivelmente metafórico. Há um sentimento de invasão, uma provocação carnal, apelativa e desesperada por uma mobilização sensorial. A arte como um corte, com um desejo disruptivo explícito. Não se sugere aqui uma tentativa evidente de impulsionar um corpo à ação? Então me vem outra pergunta: o que a arte pode realmente mobilizar? Essa indagação está no cerne da arte e seus limites perante nós, da relação possível que ela estabelece com o outro. Parafraseando Paulo Freire em uma ideia famosa sua sobre a educação, e a modificando levemente para o contexto artístico, podemos concluir: a arte não transforma o mundo. A arte muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo. Sim, as músicas de Belchior me transformaram como pessoa, cabe a mim mudar o mundo, afinal, "amar e mudar as coisas me interessa mais", como bem diz Belchior na canção "Alucinação".              

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