"Ivan, o terrirvel" é um manifesto por um cinema maldito relegado ao esquecimento pelo mercado, sem espaço no circuito comercial, ontem e hoje, basta ver que este documentário importantíssimo está disponível em apenas um cinema, em uma única sessão, às 13h30, um escárnio e um profundo desrespeito à memória do cinema brasileiro. Um dos méritos de Abbade é de se manter fiel ao seu personagem e o amor ao cinema que emana dele, buscando incorporar à narrativa do filme um humor à moda Cardoso, o que lhe garante a leveza e irreverência tão afeitas ao terrir, subgênero do terror, no qual Ivan Cardoso assentou o sucesso da sua longa e variada carreira, onde também realizou além das ficções, documentários e fantásticos filmes experimentais.
Além de ter um material bruto de irrefutável qualidade e quantidade que muito colaborou para a dinâmica do documentário, visivelmente Mario Abbade não se segura somente na profusão deles, o mais interessante é o quanto consegue fazer de "Ivan, o terrirvel" algo realmente vivaz e intenso. Mais do que um documentário sobre Ivan Cardoso, Abbade realiza um filme sobre o amor ao cinema, sobre a árdua labuta de fazer cinema no Brasil quando você não pretende filmar sob as regras do mainstream. Há uma potência que surge entre a verdade do que pensa o diretor do documentário e o sujeito a ser retratado. Entre Abbade e Cardoso há uma sintonia, uma crença do que deve ser o cinema e isso exala diretamente da tela e contagia quem assiste.
O filme de Abbade nos mostra que é fundamental sim saber manejar os instrumentos, controlar a técnica e tudo mais o que envolve a arte cinematográfica, porém, muitas vezes falta uma alma perante esse arsenal de conhecimento e até um certo descompromisso com a parte técnica e um maior engajamento no pensar o cinema em si e todos os elementos que o cercam. Esse "Ivan, o terrirvel" aponta para isso, e como é bom poder adentrar no universo de Ivan e poder desmascarar o excesso de planejamento que mata o prazer do ofício. Quando começa a filmar no início da carreira, Ivan Cardoso não sabia sequer como fazer um filme, construir solidamente uma ideia, mas possuía o fundamental, o gosto pela experiência de filmar. Um filme é verdadeiramente histórico quando não busca mitificar seu personagem, nem tão pouco criar uma atmosfera artificial para propiciar o surgimento de falsas lendas. Por isso, a entrada em cena do roteirista R. F. Luchetti, é tão crucial para o trabalho de Cardoso, que não sabia como estruturar roteiros para o seus filmes. Esse personagem é central dentro da filmografia de Cardoso, por dar uma organização, um arcabouço técnico dentro do universo que Luchetti tão bem dominava, o do gênero terror e que tanto encantava Ivan Cardoso, então candidato a pretenso diretor do mesmo gênero.
É inegável que o documentário de Abbade inspira-se no próprio Ivan Cardoso ao realizar um filme com uma linguagem ousada que se aproxima do risco ao misturar em ritmo de colagem diversos tipos de materiais, como imagens de arquivo, de filmes do diretor, entrevista direta com o protagonista, apelos ficcionais (hilários por sinal), grafismo e animação. A montagem dá uma dinâmica interessante, confere uma fluência narrativa e contempla a própria versatilidade artística de Ivan Cardoso, que trabalhou como fotógrafo e fazendo capas de disco e cartazes em geral.
Abbade compreende que se há algo tão genuíno em nosso país, essa originalidade está no improviso e na capacidade de expressão libertária do nosso povo. Ivan Cardoso é um desses brasileiros autodidatas, que não passou por uma escola de cinema, assim como quase todos os seus ídolos, como Glauber Rocha, Torquato Neto e Rogerio Sganzerla. Mas sabiamente, Cardoso ainda se misturou com outros intelectuais com formação mais acadêmica, que prezavam muito pelo exercício do experimental, como Hélio Oiticica, e claro, sem esquecer dos irmãos Campos, ícones do Movimento Concretista brasileiro e do poeta, professor e ensaísta Décio Pignatari. Por beber em fontes tão próprias, e muitas vezes alheias ao cinema, Ivan Cardoso realizou no cinema a proeza de experimentar filmes com esses gênios da vanguarda made in Brasil. Assim, Ivan Cardoso foi do terrir ao vanguardismo sem vergonha e sem freio, fazendo um caminho insólito, peculiarmente brasileiro e tão afeito à mistura e a antropofagia. Infelizmente, o Brasil também é o país das casernas mofadas e da mesquinharia política e cultural. Aqui, ser original é ser marginal, é caminhar na corda bamba sem se ter uma cama elástica para amortecer a queda.
"Ivan, o terrirvel" é imprescindível como um documento que aponta à necessidade do Brasil conhecer mais seus artistas, de valorizar o patrimônio cultural de um país desmemoriado, e que por isso mesmo, sem perspectivas de futuro e que esqueceu de sonhar. Um filme que resgata uma história preciosa, de um tempo em que o cinema tinha um Glauber e um Sganzerla, artistas que corajosamente enfrentavam a arte como risco, ousadia e rebeldia, características que estão cada vez mais diluídas em um mundo artístico por demais insosso, dominado pelo teor meramente comercial e financeiro. A ousadia é um bem em escassez e o ato de revisitar artistas como Ivan Cardoso torna-se um ato subversivo e de revigoramento de uma cultura combalida, se bem que filmes como esses não tem espaço no atual circuito, viciado no mais do mesmo das velhas fórmulas vazias. E é justamente isso que precisamos reverter para que os cinemas malditos voltem a frequentar nossas telas.
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