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CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO



Desde que o samba é samba 

Texto de Marco Fialho

Quem conheceu Thiago B. Mendonça vendo o seu engajadíssimo filme político "Jovens infelizes ou um homem que grita não é um urso", ganhador do Troféu Aurora na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2016, fatalmente vai estranhar "Curtas jornadas noite adentro", mergulho afetivo que o diretor realiza no recente samba paulistano. A verve aqui realmente é outra, com Thiago discutindo a difícil tarefa de formar um grupo de samba e viver disso. 

Durante todo o filme, vemos os componentes do ficcional grupo Zagaia se dividirem entre a necessidade de manter empregos que não os fazem felizes e vibrantes ensaios e shows que quase sempre beiram o decepcionante. Assim Thiago B. Mendonça vai construindo sua mise-en-scène, filmando personagens macambúzios, com uma câmera estática e sem graça em seus empregos, enquanto inversamente, flagra os mesmos personagens com uma câmera libérrima a registrar músicos radiantes e plenos pela noite a cantar e tocar. A linguagem ficcional de "Curtas jornadas noite adentro" flerta abertamente com o documental e quase sempre se contenta com o registro das ações, sem correr grandes riscos formais, mas há uma nítida funcionalidade narrativa nessa escolha.

O filme muito me remeteu a consagrada música "Desde que o samba é samba", de Caetano Veloso, onde o compositor baiano diz "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim. A lágrima clara sobre a pele escura. À noite a chuva que cai lá fora. Solidão, apavora. Tudo demorando em ser tão ruim. Mas alguma coisa acontece no quando agora em mim. Cantando eu mando a tristeza embora..." Thiago parece resgatar com o filme esse sentimento de tristeza contido na origem do samba e que dialoga tão bem com o nosso momento político e social. Esse é o principal sentimento que nos acompanha e vem à tona durante os poucos mais de cem minutos do filme. 


Há sobretudo uma estrutura cíclica no filme, tendo o samba como o elemento de coesão da história, como se a busca do prazer dos personagens justificasse o viver de cada um. Cena a cena, o samba torna-se uma espécie de resistência, enfrentando a exploração de donos de bares que os vêem como fonte para aumentar seus faturamentos, com uma recusa ostensiva de dar o merecido cachê aos músicos. Os sambistas ainda sofrem com os preconceitos de familiares que ainda possuem uma visão antiquada de que o samba é algo feito por vagabundos. Cada vez que a câmera acompanha cada músico em seus míseros empregos, de carcereiro, em supermercados, e outras atividades laborais mais mecânicas, as imagens vem acompanhadas de uma tristeza sem fim. Mas o interessante é ver a cada nova noitada uma maneira de redenção à vida miserável que o mundo reserva a cada sambista. Nesse aspecto, pode-se dizer que a visão política de Thiago B. Mendonça não mudou apenas sofreu uma ampliação, pois a política também está no cotidiano das pessoas.

Em "Curtas jornadas noite adentro" (título com uma clara referência ao teatro do cotidiano de Eugene O'Neill, fora a ironia do curtas no lugar de longa, como se lembrasse que os momentos de dor são sempre maiores do que os de alegria) Thiago B. Mendonça presta uma homenagem à força da cultura popular, em especial a de matriz afro-brasileira, onde o samba, e ritmos afins, são registros de um tempo de resistência pela cultura, área de atuação que foi, e ainda continua a ser, constantemente massacrada por um contexto político canhestro que vê a arte como algo meramente subversivo e ofensivo ao status quo. O filme é uma ode para que as jornadas musicais se tornem mais longas do que curtas e que a dignidade volte a florir em nosso país. 



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