Guerreando com a história
Texto de Marco Fialho
"A Mulher Rei" foi um filme que me dividiu bastante. Tem momentos surpreendentes e uma realização fantástica, em especial como um filme de aventura bem azeitado, claro, tendo como referência um modelo clássico de cinema na narrativa, na dramaturgia, porém sem a necessidade daquela enxurrada de artificialismo no uso do chroma key cada vez mais banalizada pela indústria hollywoodiana. Há um empoderamento feminino precioso de mulheres heroicas, guerreiras mesmo, embora sem perder jamais a ternura, o que é mesmo salutar e digno de nota. Fora a presença sempre luminosa e competente de Viola Davis, uma atriz que entrega tudo e um pouco mais em seus trabalhos. Mas vou registrar também, ao longo do texto, algumas reflexões críticas acerca da estrutura da obra.
Se a obra ganha estruturalmente como um potente filme de aventura e por buscar um enfoque histórico diferente ao centrar no protagonismo feminino em um mundo masculino, europeu e misógino que o apagou historicamente, ele derrapa ao idealizar as relações de poder existente na própria estrutura política de Daomé, cujo poder era essencialmente machista e impunha o celibato às guerreiras Agojie. "A Mulher Rei" aborda esse tema perifericamente e o dilui dentro de uma estrutura narrativa que o torna praticamente imperceptível, e olha que a diretora foca o filme inteiramente nas guerreiras Agojie, embora tudo indique que a construção épica acabe por promover ou diminuir uma reflexão mais aprofundada sobre as relações de poder no próprio reinado e pouco salientando o poder tóxico masculino ali ainda existente. Os casamentos do Rei Ghezo são tratados tão somente na esfera das intrigas palacianas, o que enfraquece os elementos que o filme queria tanto ressaltar e potencializar, o da força das mulheres. Talvez a ideia de espetáculo da história pelo cinema, inerente à própria estrutura de produção hollywoodiana, tenha atrapalhado um pouco um resultado mais crítico em relação à sociedade de "A Mulher Rei".
Claro que "A Mulher Rei" não almeja em si ser um documento histórico e tem plena consciência do seu papel muito mais como uma peça de entretenimento e assim "molda" a história para uma certa funcionalidade narrativa e dramatúrgica do filme. Um dos grandes méritos de Gina Prince-Bythewood (que também é uma das roteiristas do filme) nesse sentido é o de priorizar os laços familiares na trama, pois esses elos perdidos muitas vezes moviam as vidas das pessoas escravizadas que eram sistematicamente separadas dos seus entes mais queridos. Quase todos os personagens trazem essa marca na pele e esse fato é largamente usado para o desenvolvimento dramatúrgico de "A Mulher Rei". A quantidade de estupros, com requintes cruéis de violência (alguns eram coletivos) é outra marca bem presente no enredo, inclusive no caso da guerreira Nawi, com interpretação cativante da atriz Thuso Mbedu, que reserva surpresas na história por ser igualmente oriunda desse injusto processo social.
Mas quero chamar a atenção para um fato muito importante da produção, a da valorização da história da África no cinema, em especial no hollywoodiano. Famosa por retratar a história de todo o mundo, Hollywood tratou sempre o continente africano com um desprezo sem igual. São pouquíssimas produções onde ele aparece com protagonismo, apagamento este que sempre me soou muito estranho. "A Mulher Rei" resgata uma história da África Ocidental, de um fato relacionado à época escravista e busca estabelecer um ponto de vista de um grupo feminino dentro de uma estrutura claramente machista. Até considero que esse fato está ali presente, embora considero que ainda como periférico e pouco aprofundado, mas não há como negar que "A Mulher Rei" possua graça narrativa bem acima da média das últimas grandes produções hollywoodianas, fortemente (muitas vezes tão somente) assentadas no CGI (Computer Graphic Imagery). Dá gosto de ver uma história bem desenvolvida (por mais que tenha lá seus problemas históricos), com alguma dose de humanismo, sim, porque o épico deve ser sobretudo sobre pessoas e seus feitos, assim como John Ford tantas vezes realizou nas obras que dirigiu no período áureo da Era Clássica de Hollywood, concordando-se ou não com a sua visão de mundo. Seria ótimo que as produções mais portentosas economicamente da indústria dominante fossem mais humanizadas como é o caso dessa importante "A Mulher Rei".
O viés histórico escolhido pela diretora Gina Prince-Bythewood é louvável por ressaltar um momento histórico onde as populações negras escravizadas sofreram com a barbárie europeia e a destruição de sua cultura pela via da violência. A diretora ainda sublinha nesse processo o papel vigoroso das mulheres como resistência potente e armada. O reino de Daomé estruturava sua força em um grupo de mulheres guerreiras chamadas Agojie, cuja General era Nanisca (Viola Davis) e cujo reinado era comandado pelo Rei Ghezo (John Boyega). Vários reinados locais guerreavam entre si para poder decretar quem seria entregue para ser escravizado pelos reinos europeus na América. É justamente nessa relação com as potências europeias que o filme falha, pois ao retratar apenas de passagem o domínio europeu, o filme joga uma carga muito pesada para os processos internos entre os reinos africanos, o que promove um quase apagamento dos europeus que eram realmente os principais promotores de toda aquela violência contra os reinos africanos.
Se a obra ganha estruturalmente como um potente filme de aventura e por buscar um enfoque histórico diferente ao centrar no protagonismo feminino em um mundo masculino, europeu e misógino que o apagou historicamente, ele derrapa ao idealizar as relações de poder existente na própria estrutura política de Daomé, cujo poder era essencialmente machista e impunha o celibato às guerreiras Agojie. "A Mulher Rei" aborda esse tema perifericamente e o dilui dentro de uma estrutura narrativa que o torna praticamente imperceptível, e olha que a diretora foca o filme inteiramente nas guerreiras Agojie, embora tudo indique que a construção épica acabe por promover ou diminuir uma reflexão mais aprofundada sobre as relações de poder no próprio reinado e pouco salientando o poder tóxico masculino ali ainda existente. Os casamentos do Rei Ghezo são tratados tão somente na esfera das intrigas palacianas, o que enfraquece os elementos que o filme queria tanto ressaltar e potencializar, o da força das mulheres. Talvez a ideia de espetáculo da história pelo cinema, inerente à própria estrutura de produção hollywoodiana, tenha atrapalhado um pouco um resultado mais crítico em relação à sociedade de "A Mulher Rei".
Na prática, o filme escamoteia alguns fatos históricos que muito poderiam acrescentar e tornar as discussões mais complexas de como estão ali retratadas. O período retratado, o de 1823, quando o reino de Daomé inicia um processo para assumir o controle político frente ao domínio do Império de Oyo, o que viria acontecer dez anos depois, e vindo o substituir no domínio do entreposto comercial de pessoas escravizadas, que durou até meados do século XIX. O filme trata a questão como se o Reino de Daomé tivesse um pioneirismo no fim desse tráfico, o que de fato é historicamente questionável, ainda mais porque o tráfico advinha de relações econômicas mais amplas, que não dependiam apenas da luta das Agojie, Daomé ou de quaisquer outros grupos locais. O poderio tanto econômico quanto armamentista europeu era muito significativo, o que mitigava as relações internas entre os reinos africanos, que até então lutavam mais pela sobrevivência do que pela soberania ou autodeterminação.
Claro que "A Mulher Rei" não almeja em si ser um documento histórico e tem plena consciência do seu papel muito mais como uma peça de entretenimento e assim "molda" a história para uma certa funcionalidade narrativa e dramatúrgica do filme. Um dos grandes méritos de Gina Prince-Bythewood (que também é uma das roteiristas do filme) nesse sentido é o de priorizar os laços familiares na trama, pois esses elos perdidos muitas vezes moviam as vidas das pessoas escravizadas que eram sistematicamente separadas dos seus entes mais queridos. Quase todos os personagens trazem essa marca na pele e esse fato é largamente usado para o desenvolvimento dramatúrgico de "A Mulher Rei". A quantidade de estupros, com requintes cruéis de violência (alguns eram coletivos) é outra marca bem presente no enredo, inclusive no caso da guerreira Nawi, com interpretação cativante da atriz Thuso Mbedu, que reserva surpresas na história por ser igualmente oriunda desse injusto processo social.
"A Mulher Rei" irá alçar a impressionante Viola Davis a mais um patamar de reconhecimento por mais esse trabalho excepcional, que ela constrói com sua interpretação da General Nanisca. Ela atrai a devida atenção pela força que carrega no potência do olhar que ela consegue irradiar cena a cena. Outra participação luminosa é da atriz Lashana Lynch como a forte guerreira Izogie, com um magnetismo que salta da tela. Realmente de impressionar. Se muitos podem dizer que o formato previsível do filme o enfraquece por um lado (o que é verdade), não se pode esquecer do vigor rítmico que Gina Prince-Bythewood consegue imprimir na obra, muito bem amparada por uma direção de arte precisa e uma fotografia singela que privilegia a elegância da imagem. E como não falar das coreografias azeitadíssimas e sincronizadas, como se espera de um competente filme de aventuras.
Mas quero chamar a atenção para um fato muito importante da produção, a da valorização da história da África no cinema, em especial no hollywoodiano. Famosa por retratar a história de todo o mundo, Hollywood tratou sempre o continente africano com um desprezo sem igual. São pouquíssimas produções onde ele aparece com protagonismo, apagamento este que sempre me soou muito estranho. "A Mulher Rei" resgata uma história da África Ocidental, de um fato relacionado à época escravista e busca estabelecer um ponto de vista de um grupo feminino dentro de uma estrutura claramente machista. Até considero que esse fato está ali presente, embora considero que ainda como periférico e pouco aprofundado, mas não há como negar que "A Mulher Rei" possua graça narrativa bem acima da média das últimas grandes produções hollywoodianas, fortemente (muitas vezes tão somente) assentadas no CGI (Computer Graphic Imagery). Dá gosto de ver uma história bem desenvolvida (por mais que tenha lá seus problemas históricos), com alguma dose de humanismo, sim, porque o épico deve ser sobretudo sobre pessoas e seus feitos, assim como John Ford tantas vezes realizou nas obras que dirigiu no período áureo da Era Clássica de Hollywood, concordando-se ou não com a sua visão de mundo. Seria ótimo que as produções mais portentosas economicamente da indústria dominante fossem mais humanizadas como é o caso dessa importante "A Mulher Rei".
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