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NÃO! NÃO OLHE! (2022) Direção de Jordan Peele


Sinopse:

Na zona rural da Califórnia, os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) administram uma grande fazenda de treinamento de cavalos. Mas tudo muda quando seu pai Otis (Keith David) morre de forma misteriosa sob uma nuvem sinistra.

O cinema alienígena de Jordan Peele 

Texto de Marco Fialho

Arrisco dizer que "Não! Não olhe!" é uma das obras mais desafiadoras da reduzida carreira de Jordan Peele como diretor. Seu terceiro longa mistura muitas referências tanto ao cinemão norte-americano quanto ao cinema de gênero, em especial o de horror, ficção científica e do faroeste. No final das contas, essa miscelânia revela um filme tipicamente fantástico, repleto de fatos misteriosos e sem explicação aparente. Uns podem ver isso como um ponto fraco enquanto outros como de um imenso acerto. Não que "Não! Não olhe!" destoe tanto dos dois filmes anteriores, os celebrados "Corra!" e "Nós", mas sim porque o racismo  tão protagonista nesses trabalhos inaugurais não se apresenta aqui como o grande tema do filme, embora ele escorra pelas bordas, como o caso do desprezado cavaleiro negro do badalado experimento fotográfico de Eadweard Muybridge com o movimento das patas dos cavalos para se pensar o princípio da imagem em movimento no cinema. E os cavalos, igualmente meras peças coisificadas por um sistema que a tudo transforma em espetáculo. 

Em "Não! Não olhe!", Peele realiza uma obra instigante, esperta, bem executada do ponto de vista técnico e com um resultado cinematográfico talvez não tão potente como a princípio podíamos supor. Os vácuos da obra podem soar como propositais ou sugerir que o diretor almejava entregar mais interrogações do que uma visão fechada e coerente sobre os personagens e os temas que poderiam ser desenvolvidos. A relação familiar, como entre o pai e o filho ou entre irmãos não chega a ficar em evidência, nem o tema da ambição humana ou da exploração comercial inerente à indústria do entretenimento. Ainda tem uma ideia que pode ser pensada acerca de suposto simbolismo de uma invasão alienígena, isto se ela fosse realmente uma questão para o filme. Essa imprecisão temática se liquidifica na exploração dos gêneros envolvidos na abordagem da trama. A impressão que fica que "Não! Não olhe!" seria mais um exercício de Peele em torno dos gêneros cinematográficos do que uma investigação sobre temas específicos.

O ator-herói de "Corra!", Daniel Kaluuya (O.J.), retorna a parceria com Jordan Peele, só que dessa vez elabora um personagem misterioso e lacunoso, que a todo o momento tentamos decifrá-lo de alguma forma. Peele não o constrói com muitas falas, nota-se nele uma forma de estranhamento, uma obsessão calada que nos impulsiona a acompanhar a trama e nos deixa intrigados com o que está para acontecer a cada nova cena, em especial no que tange ao alienígena, como ele seria ou o quê o motivaria a atacar a Terra. A introspecção de O.J. contrasta com a extroversão histriônica de sua irmã Emerald (Keke Palmer), uma jovem movida pela ambição de ficar rica e ser famosa (aparecer no programa da Oprah Winfrey). Entretanto, mesmo com um ritmo muito bem azeitado por Peele, "Não! Não olhe" prende a atenção até um pouco mais da metade do filme, até nossa atenção cair numa descendente, depois que o ser alienígena nos é revelado, e a obra se transforma apenas em uma aventura escapista. E o problema não está na falta de sabermos qual seria o interesse do alienígena (isso na verdade é o melhor), mas sim em descobrirmos que Peele queria apenas se divertir com o filme, abrindo mão de explorar muitos subtextos que a primeira parte tinha indicado.


"Não! Não olhe!" insere questões interessantes ligadas à sociedade do controle, afinal as câmeras tem um papel fundamental tanto em cenas periféricas, como a do chimpanzé que surta em um programa de TV como na firma de monitoramento de segurança que o personagem de Kaluuya busca para tentar entender fenômenos estranhos que acontecem na sua fazenda desde a morte misteriosa e sinistra do pai. Em um mundo regido pela vigilância e controle, o olhar torna-se elemento central, olhar pode ser mortal ou revelar um mundo que talvez fosse melhor nem ver. Paralelamente, há em "Não! Não olhe!" um jogo temporal entre passado e presente implícito no filme onde o apagamento do cavaleiro negro de Muybrigde sugere se repetir com o pai de O.J. como mais um negro a servir o sistema ou servir de apoio para um protagonismo de um branco ou indo mais longe, da supremacia da própria indústria hollywoodiana. 

A espetacularização da história está presente tanto nas representações do passado quanto no próprio cinema, daí a "brincadeira" de Peele ao inserir o cinegrafista Antlers Holst (Michael Wincott) especializado em efeitos visuais como um homem obcecado em captar o espetáculo, por mais que ele seja perigoso e ponha em risco a própria vida. Sim, o espetáculo é devorado e o troco se dá na mesma moeda, pois será um item cenográfico que melhor enfrentará o alienígena. Talvez a maior simbologia do filme esteja na espetacularização da abdução das vítimas pelo ser alienígena. O ato de sugar pelo olhar da vítima é sintomático, pois assim somos tragados diariamente pelas telas das TVs, computadores e celulares. Curiosamente, o alienígena abre uma janela (tal como a das novas tecnologias) por onde as pessoas são puxadas para o organismo do estranho ser, que ninguém fica sabendo se vem de outro planeta, universo ou se é uma criação ou anomalia da própria Terra.     

Sim, pensar em como a espetacularização ronda esse novo trabalho de Peele deve ser o maior indício deixado pelo diretor em "Não! Não olhe!". E lembremos que olhar é o atributo essencial desse mundo que vivemos. O espetáculo existe para que olhemos e busquemos algo nele, seja diversão ou medo. Os parques parecem sugerir isso, vide o subterrâneo do parque de diversões em "Nós". O cinema fantástico de Peele parece não ter limites, seja nas obras mais enigmáticas seja nessa mais divertida e ditada por um ritmo das aventuras Sci-Fi típicas de um Spielberg. Inclusive, reparem na construção sonora consistente de "Não! Não olhe!", referenciada ao mestre de "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977). Peele a cada novo filme vai mostrando a incrível potência do cinema negro e que precisamos ouvir as vozes que continuamente revisitam a história para questioná-la e/ou ressignificá-la, por mais que em "Não! Não olhe!" Peele não quisesse ir tão profundo quanto nas duas obras anteriores. Afinal, um cineasta não precisa ser só uma coisa, pode mostrar as facetas que assim lhe aprouver.



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