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MÚSICAS QUE HABITAM EM MIM - Nº 6 - João Gilberto (Amoroso)


LP Amoroso (1977)

https://youtu.be/fa8veDOssuA



Link para o disco de 1973:

 https://youtu.be/XHmO1klmBNg


"Melhor do que o silêncio só João."

Extraído da canção "Pra ninguém", que Caetano compôs para homenagear a canção brasileira e seus intérpretes.

Texto de Marco Fialho  

O primeiro João Gilberto que escutei foi um LP duplo, onde o mestre baiano cantava várias músicas icônicas da Bossa Nova. Portanto, não era um disco de carreira e sim uma coletânea bossanovista. A maneira minimalista dele cantar chamou-me a atenção, é claro. Nesse momento, tinha eu uns 10 anos de idade, e creio que a voz pitoresca a cantar quase murmurante despertou minha curiosidade. Mais tarde veio o disco branco, de 1973, onde apenas um elegante e pequeno mosaico com o seu nome centralizado unidos a uma pequena foto em P&B de João, muito diziam sobre o próprio disco, onde o violão amplificado junto a uma suavíssima percussão conduziam sons inebriantes com uma voz monocórdica e hipnótica. Ali, o estilo de João não só se consolida como deixa uma marca indissolúvel à música brasileira. O violão e a voz miúda e límpida (como nunca se viu, cabe destacar) a conduzir a música, a nos encantar a cada nova batida de um violão que valorizava com graça de uma vez só o ritmo e a harmonia. Ele dizia que tocava violão como se fora um tamborim. E o repertório? Quase todo de regravações de sambas e pouquíssimas canções da época da gravação, em um estilo que ficou marcado com gilbertiano. 

Ainda na década de 1970, mais precisamente em 1977, João lançaria um disco especial, "Amoroso", gravado nos Estados Unidos, com arranjos e orquestração de Claus Ogerman, e lançado pela recém fundada WEA Discos, de Andre Midani. Detalhes técnicos à parte, o resultado foi para além de fascinante e sofisticado. O que mais chamou minha atenção nessa obra singular foi o casamento inesperado e inusitado entre a ostentação orquestral e o minimalismo vocal de João. Escutar João Gilberto não foi algo pouco para mim, funcionou como uma espécie de educação dos sentidos equiparado a ler um romance de Tolstói ou assistir a um filme de Tarkovski. Há mistérios no mundo que contornam o fascínio do que é o viver, nem tudo pode ser mensurado ou até mesmo entendido e essa é justamente a graça do mistério. João nos faz atingir essas regiões corpóreas que reviram nossas vísceras e ouriçam a pele, um tipo de gozo tranquilizador e acalentador. 

Lembro de uma viagem que fiz para um simpósio em Uberlândia, nos meados dos anos 1980, quando cursava História, e ouvir uma fita cassete com o disco branco de João (gravado em 1973), em um headphone que eu tinha adquirido para amenizar o desconforto que era viajar 15 horas em um ônibus nada luxuoso. João Gilberto pode ter sido um dos artistas mais reclusos da história, mas é inegável, pelo menos para mim, que em muitas vezes ele foi a minha melhor companhia, o meu melhor diálogo com a beleza e com a harmonia de viver, como um mantra ecoando na alma até domina-la por completo, a conjunção mais perfeita que já ouvi entre voz e violão. João com sua voz monocórdica evoca o equilíbrio e induz ao consenso e por isso impôs ao mundo a paz. Com ele pude compreender benesses do existir sem dor e muito sobre inspiração tranquilizadora. João era um ser orgânico, extraía do violão a pulsação da terra que pisamos, a energia da música dos pretos baianos, com suas capoeiras e seus sambas de roda. Com apenas um violão, João Gilberto traduziu o batuque e o berimbau brasileiros e com toda a graça possível acendeu no mundo o desejo de também ser aquilo, de absorver a energia que vem do chão de um país triste, mesmo que se mostre feliz, que escravizou os pretos e lhes tirou os direitos de cidadãos, mas que produziu a música mais poderosa do planeta.

O meu encontro mais profundo com João Gilberto aconteceu quando eu morava no Grajaú, lá pelo final dos anos 1970 e início dos 1980, época em que mais ouvi música na vida, entre a pré-adolescência e a fase adulta/universitária. Quando penso hoje sobre essa fase da minha vida, o que eu tenho é pena dos meus vizinhos que precisaram de muita paciência para aturar a música ouvida em volume bem alto. Porém o pior para eles era a saturação. Quando eu comprava um LP novo, eu o escutava até furar, acabava e eu voltava para a primeira faixa indefinidamente. Entretanto, nada é tão ruim que não possa piorar. Os coitados tinham ainda que me aturar desafinando a cada música que eu colocava e tentava cantar junto. Foi o tempo em que inauguraram o Sesc Tijuca e eu pude assistir a shows incríveis. Imagina ver o início da carreira de Djavan, Geraldo Azevedo, Fatima Guedes, Luiz Melodia e tantos outros artistas maravilhosos lançando LPs que hoje são clássicos da música brasileira? Ter ao lado de casa o pequeno teatro do Sesc (em atividade até hoje) foi de um privilégio sem igual na minha formação, pois me garantiu assistir a shows e peças de teatro por um preço muito próximo ao gratuito. Que saudade que eu tenho de ver as diversas peças inteligentes e desafiadoras da Bia Lessa. Tudo isso pesou muito para eu querer ir trabalhar no Sesc e poder replicar para tantos jovens tudo o que eu tive, uma vida cultural intensa e profícua.


Minha época no Grajaú foi uma das mais felizes e iluminadas da minha vida, tanto que depois de adulto eu voltei a morar no mesmo prédio em que passei boa parte da minha infância. A vida naquela Rua Araxá, 707/303, era muito especial mesmo. Apesar de ter mudado da Tijuca para o Grajaú, bairro vizinho, embora bem mais sossegado e arborizado, eu continuei a estudar na Escola Municipal Affonso Penna (bem próxima ao Sesc Tijuca), o que me obrigava a pegar ônibus para ir e voltar da escola. Mas esses foram momentos radiosos para mim. Lembro da algazarra que era ficar com vários colegas da escola pedindo carona para os motoristas de ônibus para voltar pra casa. Fiz amizade com vários deles que eu cumprimentava pelo nome até a minha fase adulta. Era muito bom desfrutar daquele bairro em um momento onde a escalada da violência ainda não era tão sentida como o foi dez anos depois. Era um dos melhores bairros para se morar, arborizado e politizado, embora o conservadorismo sempre esteve silenciosamente presente, cada vez mais abafado pelo processo de redemocratização do país pós-1985. Hoje é triste assistir o bairro novamente mergulhar numa corrente mais reacionária. Talvez a minha memória me traia, ou queira criar um ambiente de conforto ideológico para me contentar, e o bairro tenha sido mesmo sempre conservador, basta lembrar o que diz a canção "Querido diário" (1982), que outro João, o Bosco fez em parceria com Aldir Blanc: "mais fora de esquadro, do que esquerdista no Grajaú". Eu não sei o porquê, mas sempre preferi guardar em mim as imagens das bandeiras vermelhas que sempre coloriam as bocas de urna no bairro durante os pleitos eleitorais.

O que eu mais lembro é que voltar para casa depois da escola era maravilhoso. Aquele apartamento da Araxá proporcionou a mim e ao meu irmão momentos de incrível felicidade e sempre torneados pela música. Meu pai como funcionário do BANERJ (Banco do Estado do Rio de Janeiro) estava em ascensão e tinha sido nomeado gerente da nova Galeria de Artes do banco, situada na Av. Atlântida, em Copacabana. Economicamente, nossa vida melhorava como nunca. Nosso quarto tinha uma beliche, onde meu irmão dormia em cima e eu embaixo. Meus pais ainda não sabiam que meu irmão tinha alergia a fungos e colocaram um carpete felpudo que eu achava lindo de cor ocre e que era delicioso para ficar deitado. Era nesse ambiente confortável (como nunca tivemos antes) que tínhamos nosso aparelho de som bem moderno, onde passávamos as tardes ouvindo nossos LPs, quase sempre comprados na Lojas Mesbla do Centro, e mais tarde na Loja Hi-Fi do Shopping Rio Sul. Também ouvíamos rádio, Nacional  FM, precursora da posterior MPB FM (que também já acabou), que tocava clássicos da MPB e muitas novidade musicais, que hoje já viraram igualmente clássicos. Cercados de tanta música foi inevitável a vontade de aprender a tocar um instrumento. Meu irmão ganhou um saxofone tenor e eu uma flauta transversa. Nossa vocação para acabar com o sossego da vizinhança estava mesmo escrito nas estrelas e tentem imaginar as tardes de nossos vizinhos ao terem que ouvir dois principiantes a lhes atormentar a paciência com tanto som repetitivo e chato das lições infinitas. Bem, acho que eles deviam torcer para que voltássemos a tocar os LPs de antes.

Foi mais para o final desse ciclo no Grajaú que eu me aproximei mais profundamente da musicalidade de João Gilberto. Creio que eu já estava cursando o ensino médio em uma escola particular, um dos piores momentos da minha vida escolar, e que me fez sentir uma nostalgia precoce da escola pública, por onde fiquei por nove anos luminosos. À época, não sabia quem era Ira Gershwin, não conhecia nada de música italiana, muito menos da mexicana. Mas João era João e o que ele faz é algo tão inacreditável por simplesmente não só nos aproximar, mas nos aconchegar a esses cancioneiros populares de outras partes do mundo. 'S Wonderful, de Ira Gershwin, abre o disco e serve como um approach, uma bela preparação de terreno para o que vem em sequência, ela instala o clima, a leveza e a sofisticação que darão o tom do que seria o disco. No todo, o disco apresenta apenas 8 canções. O lado A é marcado pelas canções internacionais, com exceção de "Tin-tin por tin-tin-tin", de Geraldo Jaques e Haroldo Barbosa. O lado B por sua vez foi inteiramente dedicado ao mestre Jobim e a parceiros como Newton Mendonça e Chico Buarque. Essas gravações de João Gilberto tornaram-se célebres, como o bolero clássico mexicano "Besame mucho", composta por Consuelo Velázquez, que escreveu à canção em 1940, quando tinha apenas 15 anos de idade. A gravação de "Wave" (icônica música de Tom e que não tinha letra quando foi composta em 1967) foi um sucesso enorme, e ainda hoje, é uma das músicas mais executadas de João. 

Entretanto, vale lembrar que João Gilberto nos deixou registrado LPs especialíssimos, além dos que já mencionei acima. Um deles, de 1981, "Aquarela do Brasil", quando se reuniu com Caetano, Gil e Bethânia para cantar versões de clássicos do cancioneiro, com destaque para Ary Barroso e Dorival Caymmi. Outra pérola do repertório de João é o impagável LP feito em 1964, junto com o saxofonista Stan Getz, com canções de Jobim, um primor de disco. Outro disco interessante de João foi o que ele gravou em 1980 para uma série musical da Rede Globo, onde se usava o nome completo dos artistas, no caso aqui, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, onde João continua surpreendendo ao gravar as inesperadas "Menino do Rio", de Caetano; "Curare", de Bororó; "Jou Jou Balangandãs", de Rita Lee e "Eu e a brisa", de Johnny Alf. 

A voz acalentadora de João Gilberto está sempre comigo e quando caminho pelas ruas do Grajaú, sim ainda o faço sistematicamente mesmo não morando mais no bairro, a voz dele é uma das vozes que me acompanham. Até hoje consigo imaginar cada espaço daquele apartamento da Rua Araxá, cada cômodo dele. E pensar nele me remete ao bairro como um todo. Cada flor, árvore e pássaro que avisto por lá, me vem à lembrança João, talvez por ser ali o lugar onde mais escutei seu canto, mas pode ser por me remeter também à serenidade, a mesma que continuo a buscar hoje em lugares como Búzios, Paraty, em algumas cidades mineiras, serras gaúchas ou em praias baianas. A maior certeza que tenho é que onde estiver ou existir a beleza haverá o vulto de João Gilberto, nem que seja em algum cantinho muito bem reservado da minha mente.    

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