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MARTE UM (2022) Direção de Gabriel Martins


O universo é mais  

Texto de Marco Fialho

A produtora mineira Filmes de Plástico vem se destacando por delinear obras que expressam o cotidiano da população periférica de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte (ver "Temporada", "Baronesa", "Ela volta na quinta"). Essa característica territorial confere um quê de peculiar e afetuoso aos longas que seguidamente reafirmam corpos potentes que fazem de seu viver um ato de resistência. "Marte Um", novo trabalho de Gabriel Martins (No coração do mundo) é mais um desses filmes a falar de uma periferia vivaz, que leva a vida apesar das agruras inerentes ao seu cotidiano. 

Além do poderoso arsenal imagético que "Marte Um" oferece, com uma fotografia que contrasta permanentemente personagens e cenários, e se permite banhar com breus em meio a cores intensas de azul e amarelo, em um diálogo criativo que circunda de uma vez só o realismo, o metafórico, sem esquecer dos delicados toques de magia. Uma magia espantosamente emanada do próprio cotidiano. Portanto, é a fotografia que cria um universo próprio para o filme, que trabalha numa única imagem o real e o fantasioso. Ao mesmo tempo que o realismo é gritante, pois o território é o periférico, ele nos agracia com sutilezas na imagem que acrescentam um quê de irreal. Por isso cabe observar como a camada sonora do filme é construída pelos detalhes e muito contribui para imbricações entre as sedutoras camadas imagéticas. Cada imagem traz consigo sons muito bem alinhavados vindos do extracampo, o que dá a perceber o quanto a casa não está isolada do mundo. "Marte Um" está sempre se referenciando com esse mundo mais amplo. Há uma intenção de expansão descomunal e nada está ali pelo acaso, há um pensamento permanente em torno do que vemos e ouvimos no filme.                          


"Marte Um" se coloca em um poderoso limiar entre o documentário e a ficção, uma espécie de fábula da vida real. Nos aproximamos dela quando sentimos o cheiro de um cotidiano que poderia ser o de qualquer um e nos encantamos quando percebemos a existência de algo mágico naquele mesmo cotidiano, pela sucessão de fatos que juntos enunciam uma beleza que está para além desse mundo, ou que talvez possa estar pairando pelo espaço sideral. Não casualmente nos defrontamos inesperadamente com o ex-jogador Sorín aparecendo no filme, fazendo o personagem dele próprio. Sim, Gabriel Martins insere um personagem da vida real, bem famoso em seu território mineiro, no meio da ficção. É necessário sublinhar este fato. Tal como Eduardo Coutinho introduziu atrizes em "Jogo de cena" para abalar a nossa crença na veracidade dos depoimentos no documentário, agora Martins enxerta Sorín, um personagem da vida real para interrogar o universo ficcional. É uma estratégia no mínimo desconcertante, que coloca de imediato em suspenso o estatuto da imagem vista. Gabriel Martins não o faz como deboche ou sequer como elemento cômico (apesar disso até render risos), mas tão somente para questionar nossa crença sobre o que é real e ficção em um filme ou o quanto um filme pode explorar a chamada vida real. 

"Marte Um" transita obliquamente entre um universo demasiado palpável de uma família periférica e o universalismo inerente às grandes preocupações humanas. Isso tudo dentro de um plano narrativo aparentemente simples que aposta numa fluidez narrativa agradável ao espectador. De repente, somos envolvidos pela história de uma família como qualquer outra da periferia, ora maravilhosa como tantas, ora infeliz como tantas outras (lembrando aqui Tolstói quando esse disse que toda família infeliz é infeliz à sua maneira). Como uma boa crônica, "Marte Um" navega pelo cotidiano periférico tendendo para o realismo, sem esquecer do humor no decorrer da trama, mas sempre preservando a nós um quê de sedução e acolhimento, pois há um afeto pelos personagens inerente em cada aparição deles na tela e isso é resultado de um trabalho cirúrgico e brilhante da direção. Gabriel Martins também roteirista da obra, consegue uma grande proeza ao equilibrar com maestria o protagonismo entre os quatro membros da família (pai, mãe, filha e filho), além de criar um raro ritmo tanto na narrativa quanto na montagem. "Marte Um" é um filme que pulsa, onde cada momento parece extremamente vivo, como se pudéssemos sentir cada respiração emitida pelos personagens.             


Logo na primeira sequência, Gabriel Martins delimita bem o pano de fundo político de "Marte Um": o Brasil de 2018, com a trágica vitória eleitoral de Bolsonaro para presidente da República. Não à toa, a primeira imagem do filme é a de Deivinho (Cícero Lucas) deitado numa cadeira, olhando para o céu, como se buscasse algum sentido ou esperança de vida na imensidão, fora da Terra. Existência e resistência colocam-se lado a lado nessa família preta, pobre e guerreira. A casa dessa família torna-se o território central dos personagens. A cozinha, a sala e o quarto dos filhos assumem relevância e protagonizam a eminente crise que está a bater na porta deles. Cada um dos quatro protagonistas de "Marte Um" viverá esse momento pesaroso de uma maneira, os pais como tragédia anunciada no presente e os filhos como vã esperança em um futuro onde nada parece ser promissor, apenas os eternos sonhos da juventude. Gabriel Martins sabe criar uma mise-en-scène que valoriza tanto os personagens, com belos closes que valorizam olhares e expressões faciais sem exageros dramáticos, sem esquecer dos planos de conjunto em que a cenografia realista muito fala sobre o contexto dos personagens, seja em casa ou no trabalho, mesmo que a fotografia insista em se colocar em um terreno mais lúdico. 

Wellington (Carlos Francisco), o pai da família, se mostra um personagem fundamental para a discussão da divisão de classes no Brasil. Ele trabalha como porteiro em um edifício luxuoso e esse é o território onde a luta de classes surge como um importante aspecto no filme. Há uma visível tensão entre ele e a síndica que se excede ao solicitar continuamente que o porteiro também cuide de seu apartamento enquanto ela está a viajar. A degradação da relação de trabalho é exponenciada a cada contato entre eles. É exigido por parte dela uma constante submissão dele, cabendo sempre a ele se resignar, pois a família depende demais desse mísero salário para não passar fome. Gabriel Martins explora exemplarmente esses conflitos de classe, sem forçar barras, construindo uma dramaticidade verdadeira que beira às vezes o documental. Evidente que há uma visível ironia quando o personagem Flávio, um porteiro novato (interpretado pelo sempre engraçado Russo Apr) surrupia os bens da síndica se escafedendo logo a seguir e deixando Wellington em grande apuro, já que a chave do apartamento dela estava sob a responsabilidade do velho porteiro. Gabriel Martins deixa claro que "dar a volta" também faz parte do perigoso jogo da desigual luta de classes.


Outra personagem exemplar na trama é Tércia, esposa de Wellington. Ela não possui um trabalho fixo, embora carregue o trabalho doméstico da casa nas costas. Ela será protagonista da mais perfeita metáfora de "Marte Um", a da pegadinha. Nada mais define a força do filme do que o momento em que ela participa de uma pegadinha feita por um programa de TV. Do nada, somos arremessados nessa espécie de brincadeira de mau gosto que muito diz sobre a nossa vida a partir da vitória dos políticos de extrema direita no Brasil. É nesse momento que a força da construção narrativa se desenha com excelência. A maneira com Tércia trata a pegadinha é que faz toda a diferença. Toda aquela violência gratuita que a pegadinha representa traz no bojo uma mudança no clima emocional da família e prevê a dificuldade que será viver em um país sem expectativa de futuro, possui um peso, uma carga simbólica importantíssima, além de causar uma identificação imediata da personagem com o público.

Já os personagens dos filhos de Wellington e Tércia, Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) são os que dialogam diretamente com a perspectiva de futuro no filme, que lutam contra a projeção que os pais fazem em relação a eles. A menina e o menino tornam-se perspectivas de salvação financeira da família, que por sua vez acarretam conflitos permanentes entre eles e os pais. Eunice quer sair de casa, alugar um apê próprio, mas tem dificuldade para assumir a relação com a namorada, sempre tratada como amiga perante a família. Já Deivinho quer ser astrofísico enquanto o pai sonha com o seu futuro promissor como um craque do Cruzeiro. São choques que traduzem os percalços vividos no presente. Cada protagonista alinhavado pela história de Gabriel Martins está inserido em uma lógica realista que se mostra muito eficaz e verdadeira, porque além de substrato de vida real, do cotidiano comum, esses personagens possuem vontade de viver, aspirações, desejos, o que lhes confere permanentemente um frescor. Somos irremediavelmente sugados para o seio dessa família, nos tornamos cúmplices de suas vitórias e derrotas, das tragédias e também dos momentos de regozijo. Essa é a maior força emanada de "Marte Um".


Para nós brasileiros, não existe algo mais palpável quanto o futebol e "Marte Um" brinca com essa paixão nacional ao contrastar esse sentimento tão comum, ao verdadeiro amor de Deivinho, que simplesmente é algo que está para muito além de nossos olhos, colocado em um campo visual distante e povoado pela imaginação. Sim, às vezes para encontrar nosso sentido de vida é necessário lançar-se para fora do real, sonhar e querer o que os nossos pés jamais pisarão. Se o futebol depende da habilidade dos pés, admirar os planetas depende da tão somente da cabeça. Note-se que estamos a falar de dois extremos corporais. Entretanto, tem momentos que não bastam nem os olhos nem os pés. Quando Deivinho constrói um telescópio ele o faz misturando o palpável, isto é, um instrumento que amplia e nos concede ver um astro que a olho nu não jamais veríamos, com uma certeza que mesmo ampliado você ainda está distante do objeto desejado e que essa lacuna traduz muito do nosso existir, que por mais próximo que chegamos de algo há ainda muito por explorar e descobrir. Na primeira cena, Deivinho olha com admiração para o céu, na última cena o mesmo se repete, embora a intensidade seja de outra monta. No meio disso tudo teve a internet, que para Deivinho foi utilizada como uma janela infinita, um caminho sem fim para novas descobertas, também como um tipo de céu a ser igualmente perscrutado. O futuro se coloca como um campo de possibilidades e o interplanetário, de repente, se coloca magicamente sob nossos pés, como uma deliciosa rota escapista. Os sonhos existem e podem sim ser vividos, inclusive independente das tragédias políticas que nos acometem, e "Marte Um" com imensa poesia nos prova que isso é possível.


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